Com o sul do Reino Unido assolado por uma nova variante do SARS-CoV-2, o vírus que causa a covid-19, o Governo de Boris Johnson teve um vislumbre do que poderá ser o caos pós-Brexit caso não consiga negociar um acordo comercial com a União Europeia até ao final do ano. O fecho da fronteira francesa deixou o país isolado, com milhares de camionistas parados durante dias, bens perecíveis a estragarem-se e supermercados à beira da escassez. Só terça-feira à noite foi possível chegar a acordo com Paris, o que permitiu a passagem de camionistas com testes negativos à covid-19 nas 72 horas anteriores. Mesmo assim, esta quarta-feira, as filas mantinham-se por quilómetros, com os britânicos a terem de chamar os militares para a testagem em massa.
Esta tempestade perfeita que alinhou a pandemia de covid-19 com o Brexit nas vésperas das festividades «levará a um Natal negro» para as empresas importadoras e exportadoras britânicas, avisou esta sexta-feira David Thomson, diretor da Food and Drink Federation Scotland. «Ouvimos empresas dizer que esta é a gota de água para elas, que não conseguirão lidar com as perdas», lamentou Thompson à BBC. A companhia aérea alemã Lufthansa até já começou a levar pelo ar dezenas de toneladas de alimentos para o Reino Unido, mas vários revendedores tiveram de impor limites à compra de itens como arroz e ovos e «os corredores de alguns supermercados estão vazios», notou o canal britânico. Algo que não é de espantar – mais de um quarto dos alimentos consumidos no Reino Unido vêm da UE.
Se começou com otimismo, após uma britânica receber a primeira dose aprovada da vacina da Pfizer e da BioNTech, dezembro está a terminar com os economistas a preverem uma recessão ainda mais profunda, agravada se não houver acordo para o pós-Brexit. «Longas filas de camiões em Dover e Folkestone não auguram nada de bom para o que aí vem», escreveu David Blanchflower, antigo membro do comité de política monetária do Banco de Inglaterra, num artigo no Guardian.
Os impactos da saída do Reino Unido da UE poderão fazer-se sentir mesmo a nível do combate à pandemia, avisaram as lideranças do serviço nacional de saúde britânico (NHS, em inglês), que pediram que o fim do período de transição do Brexit fosse adiado pelo menos um mês.
O objetivo seria «permitir que o NHS continue a focar-se em combater a pandemia, sem ter de lidar com as mudanças disruptivas que surgiriam no caso do no deal», lia-se numa carta da NHS Confederation, divulgada sexta-feira. A entidade teme que a súbita alteração de regulamentos de saúde a 1 de janeiro cause dificuldades, no meio do expetável pico de contágios após as festividades, além de alertar que o enorme aumento do trânsito no sudeste de Inglaterra, resultado da acumulação de camiões, está a dificultar o acesso de ambulâncias e médicos aos hospitais, ainda para mais na região que tem sido mais afetada pela explosão da nova variante do SARS-CoV-2.
«Como no final de uma série televisiva, as tramas, finalmente, juntaram-se», descreveu o conservador David Gauke, antigo lorde chanceler, ao Economist, culpando o «viés otimista» do Governo de Johnson pela crise – primeiro, por ignorar a pandemia no verão, incentivando os britânicos a saírem à rua e irem à compras, chegando até a subsidiar refeições em restaurantes; depois, por deixar para a última hora as negociações do Brexit, assumindo que seria muito mais fácil obter de Bruxelas o que pretendia do que está a ser; e, finalmente, por aumentar as expectativas dos residentes no Reino Unido para este Natal, levando muitos a optarem por viajar na quadra festiva. Agora, alguns até enfrentam o pesadelo de ficarem presos fora do país.
«Todo o processo é enlouquecedor e muito preocupante», contou ao Guardian Heather Alder, de 23 anos, que viajou de Edimburgo para a Dinamarca a semana passada, para visitar o pai do noivo, que sofre de cancro. Acabou presa naquele país, a trabalhar à distância na quinta remota do noivo, a tentar perceber se precisa de pedir novos documentos. «Agora preciso de resolver a minha situação aqui antes do Brexit», lamentou. «Ninguém parece ter a resposta quanto ao que os britânicos na Dinamarca devem fazer no Ano Novo».