Aurora de Brito começou a trabalhar no mercado de Campo de Ourique quando tinha 12 anos, pouco tempo depois da abertura do espaço. Começou por vender na banca da sogra, que era também sua tia, porque acabou por casar com um primo direito. Foi a tia que a trouxe de Trás-os-Montes, de onde é natural, para a ajudar no mercado. Andando quatro filhos e seis netos para a frente, passaram-se 68 anos e a vendedora tornou-se na cara do Mercado de Campo de Ourique, afirmando mesmo ser «mais conhecida do que a banha da cobra». É com orgulho que nos mostra as suas frutas e diz que «quem quer barato, vai ao supermercado; quem quer qualidade, vem aqui». Já perdeu a conta às variedades que tem disponíveis, mas sabe muito bem qual é a mais procurada: «Toda a gente gosta da laranja, também é a minha fruta preferida».
Durante o tempo em que estivemos à conversa, apercebemo-nos de que ninguém é indiferente à Dona Aurora. Cada alma que passa dá-lhe os bons dias e pergunta como está. Hoje, trabalha 12 horas por dia, 7 dias por semana – menos ao domingo, que tem a tarde livre. até há pouco tempo, começava a trabalhar por volta das sete horas da manhã, mas agora a filha, Teresa de Brito Ladeira, de 57 anos, está encarregue da ‘abertura’ quando não está a tomar conta da sua papelaria, perto do mercado. Dos quatro filhos, «esta é a que gosta mais das frutas», garante Aurora, apesar de os outros «darem uma mãozinha» quando é necessário. Tal como ela, também os filhos cresceram no mercado: «Passados 8 dias de terem nascido, vieram para aqui para o meio das frutas», afirma a comerciante orgulhosa. E, mais recentemente, também os netos se têm voluntariado para ajudar.
Por ser a trabalhadora mais antiga do mercado, com 80 anos de idade e 68 de ‘casa’, sente que já criou laços para a vida. «Aqui somos todos uma família, tanto os colegas do mercado como as minhas clientes, que, muitas delas, são minhas amigas», explica a vendedora.
O segredo do sucesso
A razão para tamanho êxito não é mistério e não fica apenas pela qualidade dos produtos. A animação contagiante de Aurora, que imediatamente nos presenteou com piadas picantes, certamente contribui para o elevado número de clientela. O amor ao que faz é também notório. Aos domingos, a filha diz-lhe para ficar em casa, a descansar, mas Aurora admite não conseguir: «Isto é a minha vida. Eu preciso de falar com as minhas clientes, eu ensino-lhes receitas, tudo o que elas pedem eu faço. Daí eu ter muita gente aqui: eu trato bem os clientes, é deles que eu vivo, são eles me sustentam, tenho de os tratar bem». A transmontana revela à LUZ que o marido era médico e uma vez lhe disseram que «não parecia bem a mulher de um médico trabalhar no mercado». Nessa altura, deixou de trabalhar: «Fiquei sete ou oito meses em casa e já não conseguia aguentar mais, ganhei raiva ao meu marido. Um dia ele viu que eu estava triste e perguntou-me se eu queria voltar e eu disse que sim. Ele respondeu: ‘Então vai, mais vale no mercado do que numa casa de saúde’».
O brilho no olhar de Aurora quando fala do seu trabalho não deixa ninguém indiferente, assim como a sua simpatia. E a prova disso é o facto de ter sido escolhida para representar o mercado.
Enchente pandémica
Segundo esta dupla, e ao contrário do que aconteceu com a maioria dos negócios, a venda de fruta no mercado sofreu um aumento exponencial durante a pandemia. O espaço nunca fechou e, «como as pessoas não queriam ir para os ajuntamentos dos supermercados», o mercado de Campo de Ourique assistiu a uma enchente de fazer inveja aos restantes estabelecimentos.
Os sábados de manhã são considerados a «hora de ponta». Aurora descreve este dia como «uma loucura» e confessa que «as pessoas faziam uma fila que dava a volta à banca». Mas, ao contrário do que possa imaginar-se, a confusão acontecia num clima de segurança: «As pessoas eram muito respeitadoras, ninguém se atropelava e esperavam pela sua vez».
A mudança no bairro
O mercado de Campo de Ourique foi renovado em 2013 e, agora, além das frutas e legumes, possui também alguns restaurantes e cafés. Um deles fez questão de homenagear os comerciantes do mercado, apelidando os hambúrgueres que vende com os seus nomes. O ‘Aurora’ é picante, fazendo alusão às piadas que a vendedora conta. No entanto, a comerciante assume que nunca comeu um inteiro, «porque tinha um amigo que dizia que os hambúrgueres eram feitos de minhocas» e, por isso, não gosta muito.
Com a reestruturação do mercado, assistiu-se também a uma mudança nos residentes no bairro de Campo de Ourique. A gentrificação que tem vindo a afetar inúmeras capitais europeias não deixou Lisboa indiferente. Aurora explica que «como as casas ficaram mais caras, as pessoas que vêm ao mercado agora também são diferentes». Agora, é necessário ter mais possibilidades financeiras para se morar no bairro histórico que até então tinha sido habitado por diferentes gerações das mesmas famílias. Mas Aurora mostra-se feliz e lembra que «mesmo quem deixou de morar continua a vir cá», e, em alguns casos, «também os seus filhos e os netos».
Apesar de alguns comerciantes terem ficado receosos com as mudanças impostas, esse não foi o caso de Aurora. «O mercado foi alargado, ninguém que cá estava saiu»,_esclarece.
O futuro das Frutas Aurora
Aurora de Brito não consegue prever um fim para o seu negócio. Quando «já não estiver cá», espera que os filhos assegurem a continuidade daquilo que tem vindo a fazer ao longo dos últimos 68 anos. O negócio da tia incentivou Aurora a abrir a sua própria banca. Já nesta, as mãos das filhas e dos netos são presença frequente. E os desejos da octogenária são de que o negócio dure durante muitos mais anos. A própria conta que os filhos lhe dizem frequentemente: «Hão de vir buscar-me com o caixão aqui à porta do mercado».
Madrinha das Marchas
Foi em 2005 que Aurora de Brito foi convidada para ser a Madrinha da Marcha dos Mercados. Nesse ano, frequentava um curso na Associação de Comerciantes quando uma das professoras lhe perguntou – «Já que eu era toda ‘pr’á frentex’» – se tinha alguma ideia para dinamizar a comunicação do mercado. Como aos 16 anos já tinha participado nas marchas, sugeriu que se fizessem de novo. E assim foi. Há quinze anos, desfilou pelo mercado onde trabalha e onde fez a sua vida, com o filho ao lado como porta-estandarte.
Para que a memória não fique apenas guardada no seu coração, Aurora exibe uma fotografia desse dia na sua banca. E a filha confessa o seu orgulho na «mãe vaidosa».