Portugal de luto pelo ‘senhor fado’

Cumpre-se hoje o dia de luto nacional pelo fadista Carlos do Carmo. Na hora da despedida, são muitos os amigos, discípulos e admiradores que lhe prestam homenagem. “Terá sido o mais jovem de todos os fadistas”, disse Fernando Tordo.

O primeiro dia de 2021 deveria ter sido um virar de página de um ano marcado pela pandemia da covid-19, contudo, em vez do sentimento de renovação de uma nova etapa na vida, milhões de portugueses acordaram chocados com a morte do “senhor” do fado português, Carlos do Carmo.

Hoje, dia de luto nacional, decretado pelo Governo, realizam-se a partir das 10h, na Basílica de Estrela, em Lisboa, as exéquias de uma das vozes mais inconfundíveis da língua portuguesa. “Às 14 horas, realizar-se-á uma missa de corpo presente”, revelou a editora de Carlos do Carmo, Universal, que explicou ainda que a missa “será aberta a todos os que queiram prestar uma última homenagem ao fadista que nos deixou ontem, com as devidas regras de segurança sanitária em curso”.

Já o local onde o músico ficará sepultado não foi divulgado – a “cerimónia está reservada à família e amigos mais próximos”.

O fadista morreu sexta-feira, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, vítima de um aneurisma da aorta abdominal e, desde então, tem sido alvo de inúmeros tributos e recordado por familiares, íntimos e músicos inspirados pelo seu trabalho, que recusam que este triste desfecho da sua vida represente o fim do seu legado.

 

Um miúdo na cidade, um Homem no mundo

Antes de ser considerado “uma voz de Portugal”, como descreveu o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, ou o “notável fadista” que “renovou o fado e o preparou para o futuro”, como escreveu no Twitter o primeiro-ministro António Costa, Carlos do Carmo era um miúdo do bairro da Bica em Lisboa.

Filho da fadista Lucília do Carmo e de Alfredo de Almeida, comerciante de livros, os pais eram proprietários da casa de fados O Faia, local onde começaria a lenda do fadista.

Carlos do Carmo viria a assumir a gerência deste estabelecimento em 1962, depois da morte do seu pai, apesar de na altura estar empregado na Companhia Nacional de Navegação, começando então a cantar para os seus clientes e amigos.

Em 1964 decidiu gravar com Mário Simões Loucura, de Júlio de Sousa, o único fado “que sabia cantar”, confessava, e que era muito apreciado pela sua mãe.

Esta música valeu-lhe a distinção de Melhor Intérprete (1967) pela Casa da Imprensa, não só pela exímia interpretação, mas também por ser um músico ousado que pretendia romper com as convenções do fado tradicional.

Seria apenas o primeiro de muitos prémios. Muitos anos mais tarde, depois de uma carreira marcada por dezenas de discos influentes na música portuguesa, uma passagem pela Eurovisão e concertos pelo mundo fora, em 2014, o autor de Lisboa Menina e Moça viria a tornar-se no primeiro músico português a ser homenageado com o Grammy Latino de Carreira (José Cid recebeu a mesma distinção em 2019).

 

Uma curiosidade interminável

Em novembro de 2019, já com a saúde debilitada, o fadista anunciou a despedida dos palcos. “São 57 anos a cantar, quase no mundo inteiro. São poucos os países onde não cantei. Foi muita viagem, [foram] muitos hotéis, muitos palcos, é muita coisa e é uma altura boa de acalmar. E como gosto muito de ouvir cantar bem, ainda me vou desforrar a ouvir quem canta bem”, revelou à Lusa na altura.

A capacidade de nunca deixar de aprender e a curiosidade infindável são algumas das características do fadista que os amigos recordam com mais carinho.

“Hoje desaparece essa pessoa, que terá sido o mais jovem de todos os fadistas. É uma perda muito grande”, afirmou o músico Fernando Tordo, amigo pessoal de Carlos do Carmo. “Com este infeliz acontecimento desaparece o grande responsável pela transformação, pela modificação da autoria e da composição para fado”.

Mesmo nos últimos anos da vida, Carlos do Carmo contribuiu, fosse direta ou indiretamente, para a renovação do fado e da música portuguesa – soube desconstruir o fado e apresentá-lo com um empratamento diferente a uma nova geração.

Os temas do fadista ganharam uma nova vida em contextos inesperados, nomeadamente no hip-hop. Sam the Kid, nome grande deste estilo musical em Portugal, de quem Carlos do Carmo era um confesso admirador, utilizou uma sample de “Pôr-do-Sol” na sua música “Viva!”.

Esta influência seria por de mais evidente no disco Bairro da Ponte de Stereossauro, nome artístico de Tiago Norte, produtor e DJ português que cruza o fado, hip-hop, rap e música eletrónica. O produtor e o fadista regravaram o tema “O Cacilheiro”, do álbum Um Homem na Cidade, de 1977, com uma roupagem mais moderna, conferida por batidas eletrónicas e a guitarra elétrica de The Legendary Tigerman.

“Quando o Becas [do Carmo, agente e filho do fadista] me disse que o seu pai queria participar no meu disco caiu-me tudo. Foi muito inesperado. Foi ele que gravitou para o disco, eu nem tinha coragem para o convidar”, confessou o músico ao i em 2019, quando o fadista anunciou que iria abandonar os palcos.

“Quando fiz a minha versão da música e lhe enviei estava receoso porque não conheço bem os seus gostos musicais para além do fado. Enviei-lhe o email, com a hipótese do “não” sempre presente, mas ele disse que gostou muito e que queria ir para estúdio gravar”, recordou o produtor.

Carlos do Carmo esteve sempre a apoiar as novas gerações que começavam a pisar os palcos portugueses. Agora, em jeito de despedida, os seus “aprendizes”, tratam de o homenagear.

“Meu Mestre”, escreveu a fadista Mariza no Instagram, onde também partilhou uma fotografia a seu lado em cima de palco, “como sempre chamei e vou chamar, obrigada por tudo. À Judite, à Cila, Becas, Gil, netos e amigos, o meu abraço sincero”, pode ler-se neste tributo. Um entre muitos. Também Gisela João, Carminho, Ricardo Ribeiro e outros discípulos que carregam a tocha acesa pelo trabalho de Carlos do Carmo garantiram que não vão deixar que esta chama se apague.