Ástor Piazzolla: «Moriré en Buenos Aires, sera de madrugada…»

Morreu mesmo na madrugada da capital da Argentina o homem que revolucionou o tango e o ofereceu ao mundo. 2021 será o ano do centenário do seu nascimento. Talvez agora regresse para tomar na mão o copo do seu penúltimo whisky que ficou por beber…

O bandonéon de Piazzolla enlouquece se o ouvirmos vezes sem conta. Foge da sua prisão de fole e teclas e espalha-se pela alma dos que estarão mortos quando forem seis horas. Seis da manhã, claro! «Moriré en Buenos Aires, sera de madrugada…». Teimam em dizer os livros : falecido a 4 de julho de 1992. Não acreditem. Ástor Pantaleón Piazzolla nasceu, isso sim, em La Plata, no dia 11 de março de 1921, e viveu para sempre. Deixou alucinados os ortodoxos do tango com as suas composições, que atingiam o paroxismo dos movimentos encantatórios. Em 1933 aprendia com afinco os segredos do piano com um húngaro chamado Béla Wilda, discípulo de Sergei Rachmaninov, esse romântico incorrigível cujo primeiro concerto para piano estremece a estrutura de um homem até às lágrimas. Já vivia nos Estados Unidos, em Nova Iorque, para onde os pais, Vicente, mais conhecido por Nonino, e Assunta Manetti, resolveram ir na peugada da existência de paraísos prometidos. Filhos de italianos, instalaram-se em Little Italy, o bairro italiano de Manhattan. Ástor tornou-se um garoto de rua. Um garoto de rua que gostava tanto de música que fugia das brincadeiras com os amigos para se deitar no chão da sala de casa, sozinho, enquanto os discos de Nonino de tangos, jazz e música clássica viam a agulha percorrer os riscos das estrias. E compôs Catinga, o seu primeiro tango, que se recusou sempre a tornar público, e conheceu Carlos Gardel, no ano seguinte, quando Wilda, que lhe dera igualmente aulas de bandoneón, lhe arranjou um pequeno papel no espetáculo que o grande cantor argentino apresentou em Nova Iorque: El Día Que Me Quieras. «El día que me quieras /Endulzará sus cuerdas/ El pájaro cantor/ Florecerá la vida/ No existirá el dolor…». cantava Gardel, enquanto Piazzolla puxava sons dolorosos do seu bandoneón. Carlos encantou-se. Insistiu em levar Ástor com o seu grupo no resto da digressão. Nonino não deixou. Salvou-lhe a vida. Numa viagem aérea para Medellín, na Colômbia, o avião que transportava Carlos Gardel despenhou-se. Calou-se aquele que trinava como um pássaro: «Desde el azul del cielo/ Las estrellas celosas/ Nos mirarán pasar». Desapareceu no ar, como se se volatilizasse, o Gardel que previu o futuro do pequeno Ástor: «Vas a ser grande, pibe, te lo digo yo… el fuelle lo tocás bárbaro, pero al tango lo tocás como un gallego».

 

“Adiós Nonino”

A história de Ástor P iazzolla não cabe no relatório banal de uma cronologia. Primeiro, porque a sua música não deixa. Piazzolla é um dos compositores mais livres que o mundo conheceu: nada nele parece ter regras, desde que o seu penúltimo whisky ficou por beber. Ele sabia que precisava de regressar à Argentina porque a música também é cor, e a cor das suas canções, do seu tango, das suas milongas estava nas ruas de Buenos Aires. Ele era Ástor de Buenos Aires, tal como foi, mais tarde, também María de Buenos Aires.

“Adiós Nonino” é um dos mais pungentes poemas de despedida dedicados a um pai. Vicente Piazzolla morreu em 1959 e Ástor, seu filho, fechou-se em casa dois dias a fio na urgência de exprimir a tristeza que o consumia por dentro. «Soy…! la raíz, del país que amasó con su arcilla/ Soy…! sangre y piel, del ‘tano’ aquel, que me dió su semilla…/ Adiós ‘nonino’… que largo sin vos, será el camino/ Dolor, tristeza, la mesa y el pan…!/ Y mi adiós… ay…! mi adiós, a tu amor, tu tabaco, tu vino/ Quién…? sin piedad, me robó la mitad, al llevarte “nonino”…/ Tal vez un día, yo también mirando atrás…/ Como vos, diga adiós… no vá más…!» Sim, a tristeza tomou conta de Piazzolla, mas não só. Tomou conta das coisas em seu redor, tomou conta da cidade, tomou conta dos edifícios e das avenidas, foi de Nueva Pompeya a Flores e Avellaneda, entrou pelo Barrio de Las Barracas e desaguou no rio da Prata, junto às casas de lata coloridas de La Boca.

“Adiós Nonino” é uma luz acesa através da eternidade. A eternidade louca de Piazzolla. Porque Piazzolla era louco, comportava-se como um louco, vivia à beira do precipício da loucura. O_seu filho, Gabriel, contou certa vez: «Toda a sua vida se transformou num filme. Nunca era possível saber ao certo onde encontrá-lo. Às vezes ficava em casa e compunha sem parar, ignorando as horas. Depois, de repente, saía para pegar no seu barco e partir para o mar para caçar tubarões». Seguia o instinto do seu avô, pescador porteño. E de seu pai, que antes de partir para o sonho da América trabalhava numa barbearia em cujas traseiras funcionava uma casa de apostas clandestinas. Por causa de amizades mafiosas, levou um tiro num braço. Em Nova Iorque, para ganhar uns dinheiros extra, destilava numa banheira uma zurrapa que pretendia ser whisky e andava pelos bairros mais sinistros da cidade a vendê-lo em garrafas de litro, em plena Lei Seca. No sidecar do veículo carregava um miúdo: isso despistava a desconfiança dos polícias. O miúdo era Ástor, que sofrera, com apenas um ano de idade, uma malformação no pé direito que o empurrou para uma cirurgia delicada feita por um endireita sem grande jeito para a tarefa. Piazzolla tocava bandoneón com a perna coxa erguida, apoiando o instrumento. Era, de certa forma, a sua luta contra a adversidade. A sua luta de rua a punhos nus – «Pegar antes que me peguen!», dizia. Era a lição de Little Italy. E a tristeza, sempre a tristeza, a tristeza, a tristeza como a planície de Verharen: «A planície parda e longa como o ódio. A planície e o país sem fim onde o sol é branco como a fome, onde apodrece na curva do rio solitário o coração antigo da Terra». A tristeza de Ástor era irmã da solidão: «Hoy que Dios me deja de soñar/ A mi olvido iré por Santa Fe/ Sé que en nuestra esquina vos ya estás/ Toda de tristeza, hasta los pies». Tristeza por inteiro até aos pés, marcada pela distância que se cavou entre ele e os filhos, sobretudo Diana. Tristeza que ele deixava para trás, seguindo sempre, comentando: «Hay que tener más coraje para romper que para seguir».

 

A vertigem

Ástor Piazzolla foi um homem de Buenos Aires, mas viveu o mundo. Aos 17 anos, já de regresso à Argentina, tornou-se o bandeonista da orquestra de Anibal Troilo, ganhou dinheiro, fez amizade com o grande maestro Arthur Rubinstein, que vivia na altura em Buenos Aires, aprendeu a ser um pianista superlativo com o professor Raúl Spivak, formou a sua própria orquestra, a Orquestra Típica, compôs bandas musicais para filmes como Con Los Mismos Colores e Bolides de Àcero, do realizador Carlos Torres Rios, lançou a sua Buenos Aires Symphony in Three Movements, que chocou os rigorosos por incluir na orquestra dois bandoneones, e ganhou uma bolsa de estudo para o Conservatório de Fontainebleu, em Paris, por sugestão da compositora francesa Nadia_Boulanger.

Laura Escalada foi sua mulher. Por ele criou o Quinteto Ástor Piazzolla, e recusa, como muitos, a sua morte: «Piazzolla nunca murió ni va a morir porque nos vamos a morir nosotros pero él va a quedar en la historia de la música como el mayor músico, compositor y ejecutor argentino del siglo XIX para adelante». Quando, em 1955, Ástor, outra vez em Buenos Aires, se juntou a outro bandeonista, Leopoldo Federico, dois violinistas, Enrique Mario Francini e Hugo Baralis, um baixista, Juan Vasallo, um violoncelista, José Bragato, um pianista, Atilio Stampone, e um tocador de guitarra elétrica, Horacio Malvicino, ninguém estava devidamente preparado para aquilo que o Octeto de Buenos Aires estava à beira de criar. Novos sons que misturavam o tango com improvisações jazísticas. O Nuevo Tango fez dele uma figura controversa. Muitos dos seus compatriotas sentiram-se traídos na obsessão pela religiosidade de um tango que deveria ser intocável. Ástor, o revolucionário, viu-se envolto numa discussão que atingiu as raias da política e que o transformou, de um dia para o outro, em alguém disposto a rebelar-se contra uma sociedade fechada e conservadora. Reencontrou em Nova Iorque espaço para trabalhar e ganhar a vida sem correr o risco de ir parar aos cárceres do regime ditatorial dos presidentes-generais, Eduardo Leonardi e Pedro Eugenio Aramburu, viajou por toda a América do Norte tocando enquanto Juan Carlos Copes e María Nieves dançavam essa luta de desejo e sexo em forma binária e compasso de dois por quatro: chamavam-se a si próprios Compañia Argentina Tangolandia.

 

María de Buenos Aires

Não podia haver Piazzolla sem Buenos Aires. O chamado era forte demais para que ele resistisse ao canto de sereia dessa cidade cujo coração bate ao som da palavra porteño. Ástor, o louco, escreveu em Balada Para un Loco: «¡Loco! ¡loco! ¡loco!/ Cuando anochezca en tu porteña soledad/ Por la ribera de tu sábana vendré/ Con un poema y un trombón/ A desvelarte el corazón». Piazzolla de Buenos Aires seria infinitamente María de Buenos_Aires, a ópera-tango com libreto de Horacio Ferrer, poeta nascido em Montevideu, do outro lado do estuário do La Plata. María de Buenos Aires, prostituta da cidade grande, antes e depois da sua morte. María cantadora de payadas, essas canções tradicionais gaúchas, e a sua sombra vinda do lado de trás da casa dos mortos. María e o duende; María e os psicanalistas; María e as marionetas; María e os operários. María, María, María e María. María e o bandoneón que enlouquece quem o ouve vezes sem conta, repetindo a sua dor.

María de Buenos Aires nasceu num dia em que Deus estava bêbado. Fugiu da infância do bairro miserável em que veio ao mundo e procurou o centro da cidade, onde se apaixonou pelo tango e se deitou na cama dos homens que lhe pagavam para isso. Uma onda negra de patifes e chulos mataram María porque a sua alegria não cabia na tristeza do lamento do bandonéon. «Yo soy Maria de Buenos Aires/ Si en barrio la gente pergunta/ Quíén soy/ Pronto muy bien lo sabrán/ Las hembras que/ Me envídíarán/ Y cada macho a mis píes/ Como un ratón/ En mí trampa ha de caer!/ Yo soy María/ De Buenos Aires!/ Soy la más bruja cantando/ Y amando tambíén!/ Sí el bandoneón me provoca/ Tiará, tatá!/ Le muerdo fuerte la boca». María puta no inferno que é a própria Buenos Aires. O inferno da cidade que a segrega. A sombra de María morta percorre avenidas e ruas e praças. O seu fantasma é o fantasma de Buenos Aires, tal como Ástor foi o fantasma de Buenos Aires. «Yo soy María!». E faz-se silêncio. Um silêncio opaco, sem ecos.

O duende poeta libertará María da sua morte. Devolve-lhe a virgindade. María será a mãe virgem de si própria. María de Buenos Aires tem um narrador, como nos velhos teatros gregos. Um narrador que é consciência ao mesmo tempo. Consciência do pecado de María, libertada pelo duende que inventava poesia, consciência de Ástor Piazzolla, apaixonado por Egle Martin, uma mulher casada com um fulano chamado Eduardo Palacios mas que todos conheciam por Lalo. Martin foi María para Piazzolla ao tempo em que ele escreveu María de Buenos Aires, em 1967. Era cantora, o papel foi feito de propósito para ela, foi Egle que deu o título à obra do amante. Depois, como se arrastado por uma balada para um louco, Piazzolla foi a casa de Palacios e pediu-lhe simplesmente a mão da mulher: «Escuta, Lalo, ela é a música, não pode pertencer a ninguém. Ela agora é música e a música sou eu».

Eduardo não entendeu, nem seria capaz de entender, a loucura de Ástor. A existência do trio amoroso tornou-se tão confusa que até Piazzolla sentiu necessidade de correr para uma linha de lucidez tal como os mosquitos correm para uma fímbria de luz. A lucidez teve um nome: Amelita Baltar.

Amelita tinha 26 anos e uma voz inconfundível, lavada a whiskies, com a rouquidão natural de barrios de descamisados, apesar de ser de uma família rica do Barrio Norte e de ter sido educada em Junín. E foi María. María de Buenos Aires como nenhuma outra foi capaz até hoje. «Yo soy María de Buenos Aires/ De Buenos Aires María, ¿no ven quién soy yo?/ María tango, María del arrabal/ María noche, María pasión fatal/ María del amor, de Buenos Aires soy yo».

Eu, que não morrerei em Buenos Aires, encontrei em María de Buenos Aires um vendaval de sentimentos que se misturam com sensações até ao limite de uma corda de violino tão esticada que fica à beira de se partir. Ástor Piazzolla não foi mais capaz de fugir dessa tormenta que atravessa a sua ópera-tango com o desvario de um compositor tomado pelo Duende de Lorca da cabeça aos pés. Por mais que chovessem sobre Buenos Aires as lágrimas da sua tristeza e homens encharcados procurassem conforto nos teatritos pobres e os paraguas voassem com o vento que sopra do Mar de La Plata. Ástor de Buenos Aires escreveu em Balada Para Mi Muerte: «Moriré en Buenos Aires, será de madrugada/ Guardaré mansamente las cosas de vivir/ Mi pequeña poesía de adioses y de balas/ Mi tabaco, mi tango, mi puñado de esplín/ Me pondré por los hombros de abrigo, toda el alba/ Mi penúltimo whisky quedará sin beber/ Llegará tangamente mi muerte enamorada/ Yo estaré muerto en punto, cuando sean las seis!». Amelita de Buenos Aires cantou estes versos com a força dos poderes do destino. Um hino ao medo da morte pontuado pela música da sua certeza. Tangamente, uma despedida. Tangamente, um adeus. Tangamente, uma promessa.

O penúltimo whisky de Ástor Piazzolla poderá continuar sem ser bebido por mais cem anos. Mas o repente do seu bandoneón que traça uma linha muito estreita entre a apenas dor e o absoluto sofrimento fura pela madrugada com um raio fulminante e sem trovões: «Moriré en Buenos Aires, será de madrugada/ Que es la hora en que mueren los que saben morir». Sim, é preciso saber morrer para se ser eterno.