Uns dizem que o ultraliberalismo (ou neo) não existe, outros usam o termo como um insulto. Recomenda o bom senso, quando um conceito não é unívoco, que se abandone ou se use prudência: optamos pela segunda hipótese, pelo potencial explicativo.
O velho liberalismo que tinha na sua base a liberdade individual, a autonomia, o Estado de Direito, a igualdade perante a lei, já não existe, foi substituído por uma visão predatória e irresponsável da economia como a base da qual tudo se explica.
O que temos hoje é um liberalismo defensor de uma ideia de liberdade irrestrita e do mercado livre que se autorregula. Para os defensores iniciais do mercado livre a mão invisível era Deus. Os novos evangelistas do mercado, de Hayek a Friedman, tinham uma visão laica deste. Ora, o humano não é deus. É falsa a ideia de que cada um agindo livremente viverá harmoniosamente com todos os demais.
Este ultraliberalismo é uma deformação do liberalismo clássico ou uma consequência inevitável do seu desenvolvimento?
Nomes tão díspares que vão de João Paulo II a John Gray utilizam o conceito. Inclusive o FMI em 2016 referia a factualidade do ultraliberalismo para o criticar. Três dos seus economistas principais na revista Finance & Development referiam: «Os benefícios de algumas políticas que constituem uma parte importante da agenda neoliberal parecem ter sido um pouco exagerados», e «em vez de gerar crescimento, algumas políticas neoliberais aumentaram a desigualdade, colocando em risco uma expansão duradoura».
John Gray refere o neoliberalismo como uma patologia do liberalismo que está a criar um poderoso iliberalismo. Os liberais estão surdos e cegos e estariam a conduzir ao suicídio do liberalismo. Autores como Jean Claude-Michéa ou Patrick Deneen apontam em outra direção: o neoliberalismo é uma consequência inevitável do liberalismo.
Facto, as democracias liberais do presente são neoliberais progressistas. As suas crenças principais assentam na ideia que a condição mais importante da liberdade individual é o mercado livre, uma espécie de lei divina. A democracia limita-se principalmente a proteger as liberdades do mercado. Este seria o sistema económico mais produtivo e justo e como tal devia ser copiado e implementado em todo o planeta. Os mercados livres seriam o modo mais eficiente de organização da economia e quanto maior é a sua expansão, menor seria o conflito humano. Quando se instalar a nível global, a guerra e a tirania desapareceriam e a humanidade alcançaria um cume inigualável de prosperidade e bem-estar, ou seja de felicidade. A economia e as ciências sociais teriam a tarefa de demonstrar essas crenças.
Ora, estas ideias baseiam-se em mitos falsos. O mercado livre não tem qualquer racionalidade intrínseca, é anárquico e instável. A sua matriz, como surgiu em Inglaterra a partir do século XIX, estava dependente do controlo de organismos estatais e do poder politico que tinha uma independência significativa do plano económico, embora o considerasse vital para o desenvolvimento do país. Mercado e capitais livres sem controlo efetivo que não a sua própria instrumentalidade, estão condenados a gerar desregulação e disrupções sociais e civilizacionais avassaladoras. Este mito da descoberta do segredo da prosperidade com a caução da filosofia do progresso é um embuste e é antagónico a uma ideia de sociedade livre, ética e justa.