Se os espanhóis decidem suprimir a monarquia pela terceira vez, Inãki Urdangarin será um dos heróis do novo regime», escreveu um jornal galego há oito anos, pedindo que se construísse estátuas e se nomeasse avenidas em honra do antigo craque de andebol, marido da infanta Cristina e genro de Juan Carlos. «Ninguém fez tanto pelos ideais republicanos em quase quatro décadas de restauração monárquica».
Seria um estranho elogio a Urdangarin, que recebeu o título de duque de Palma de Maiorca como prenda de casamento, não tivesse sido apanhado num esquema de corrupção milionário, primeiro de vários que abalaram a monarquia. O genro de Juan Carlos aproveitou a ligação à casa real para roubar 6,6 milhões de euros do Estado, destinados a eventos desportivos, através do Instituto Nóos (ou ‘intelecto’, em grego antigo), que fundou com o empresário Diego Torres. Acabou condenado a cinco anos e 10 meses de prisão, em 2018, e multado em meio milhão de euros, por fraude desvio de dinheiro público. Agora, Urdangarin obteve permissão para sair da prisão feminina de Brieva, onde escolheu cumprir a sua pena, passando a um regime de semiliberdade, ficando obrigado a passar as suas noites e o fim de semana num centro de reinserção social em Madrid, saindo de segunda a sexta-feira, segundo avançou o El País.
Reencontrou um mundo diferente do que conhecia há uns anos. Ganha expressão uma juventude cada vez mais republicana, que cresceu vendo a monarquia espanhola como símbolo de corrupção, não da transição para a democracia após a ditadura de Francisco Franco.
Longe vão os tempos de fotos idílicas com a família, passeando na capital, em praias paradisíacas ou estâncias de ski, prósperos e discretamente poderosos, para delícia da imprensa cor-de-rosa. Hoje, a família Urdangarín-Bourbon foge às câmaras e até aos seus concidadãos, alguns dos quais até os apuparam na rua, aos gritos de «ladrões», segundo o El Español. Tentam passar desapercebidos, perseguidos por repórteres sedentos de notícias sobre o exílio dourado de Juan Carlos em Abu Dhabi, onde este se refugiou do escândalo do TGV de Meca, a trama real que se seguiu ao caso Nóos.
Do céu ao inferno
Quando Iñaki Urdangarin marcou o último golo da vitória da seleção de andebol de Espanha, garantindo a medalha de bronze nos Jogos Olímpicos de Sydney, em 2000, o cenário era quase um conto de fadas. Nas bancadas, torcendo pelo herói, estava a princesa Cristina, sua esposa orgulhosa, com o primeiro filho do casal nos braços. Ao lado, com um sorriso benevolente no rosto, estava o príncipe Felipe, atual rei de Espanha e bom amigo do campeão, junto com a mãe, a rainha Sofia.
Com esse último jogo, Urdangarin, o braço mais famoso de Espanha, punha fim à sua carreira profissional no andebol, aos 32 anos. Conquistou dezenas de títulos pelo Barcelona, aos quais se somaram uma medalha de bronze nos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996. Foi durante esses jogos que o atleta se cruzou com a princesa, numa receção do rei, entrando no Palácio da Zarzuela no ano seguinte, como marido de Cristina.
Para a monarquia, ansiosa por se modernizar, num mundo com cada vez menos paciência para reis e rainhas, o casamento trazia todo o género de vantagens. Juntava-se à família real um homem excecional, que subiu na vida à custa do seu esforço, nascido na vila de Zumarraga, no País Basco e criado em Barcelona, na Catalunha – duas das comunidades mais hostis ao regime monárquico, onde o independentismo tem raízes profundas.
É difícil saber o que terá sentido o pai de Urdangarin, Juan María Urdangarin Berriochoa, militante histórico do Partido Nacionalista Basco (PNV, em espanhol). Engenheiro químico, alto, muito parecido de feições com Iñaki, Juan María era conhecido pela retidão e coragem, mesmo nos tempos difíceis em que o seu partido era alvo de ataques da ETA, por renunciar à violência. Seria descrito como bom interlocutor pelo seu compadre Juan Carlos, adversário de uma vida inteira, mas morreu desgostoso, em 2012, quando rebentava o caso Nóos, vendo o filho mais novo apelidado como «ovelha negra» da família pelos seus vizinhos de Zumarraga, citados pelo Diario Vasco.
Os corredores do poder, tão diferentes da vida de atleta de alta competição, foram a perdição de Urdangarin, seduzido pela facilidade com que o seu estatuto desbloqueava contratos públicos. Em 2004, no pico da sua nova carreira como empresário e consorte real, o então duque de Palma até comprou uma mansão de luxo no exclusivo bairro de Pedralbes, em Barcelona – algo muito acima daquilo que os seus rendimentos e da mulher permitiam.
Por essa altura, o esquema do duque começara a chamar a atenção. E Juan Carlos até chegou a exigir-lhe que se afastasse da Nóos. Mas era como um vício, Urdangarin não conseguia parar, queria mais, mais, mais – fingiu obedecer, mas criou uma fundação paralela, onde continuava nos bastidores, sugando fundos.
Em 2008, quando a crise económica assolou Espanha, acelerando a contestação à monarquia, o antigo atleta optou por exilar-se do outro lado do Atlântico, em Washington. Contudo, sem que soubesse, documentos suspeitos – associados à corrupção na construção de um ginásio em Palma de Maiorca – já tinham chegado às mãos da justiça, selando o destino do duque que arrastou para a lama a família real, e que agora voltará às ruas.