Metade da América respirou de alívio quando Joseph R. Biden Jr. se tornou o 47.o Presidente dos EUA, aos 78 anos. Ao seu lado estava a vice-presidente, Kamala Devi Harris, de 56 anos, a primeira mulher negra e asiática a chegar tão alto nas cúpulas do poder americano. Tomaram posse numa capital estranhamente silenciosa, com a Baixa fechada, cheia de checkpoints, arame farpado e 25 mil tropas da Guarda Nacional nas ruas, horas antes de performances de estrelas pop como Lady Gaga, Jennifer Lopez, Bruce Springsteen, John Legend, Justin Timberlake ou Jon Bon Jovi. O novo Presidente prometeu recuperação económica para todos, medidas sérias contra a pandemia de covid-19 – que já infetou quase 25 milhões de pessoas nos Estados Unidos, matando mais de 412 mil – e unidade nacional.
Por mais complexas que sejam as primeiras duas promessas, a última talvez seja a mais difícil de cumprir, num país cada vez mais polarizado onde 79% dos eleitores republicanos acreditam que Biden venceu as eleições de forma fraudulenta, segundo uma sondagem da NBC – sobretudo quando 45% desses eleitores acreditam que o assalto ao Capitólio, aterrorizando senadores, congressistas e funcionários, resultando em cinco mortos, foi justificado, segundo o YouGov.
“Temos de acabar com esta guerra incivilizada que arremessa vermelhos contra azuis, rurais contra urbanos, conservadores contra liberais”, apelou o novo Presidente no seu primeiro discurso. “Aprendemos outra vez que a democracia é preciosa, a democracia é frágil. E nesta hora, meus amigos, a democracia prevaleceu”.
“Poucas pessoas na história da nossa nação encontraram um tempo mais desafiante ou difícil que aquele em que estamos agora”, lembrou Biden.
“Um vírus como só aparece de cem em cem anos persegue silenciosamente a nação e já tirou tantas vidas num ano como em toda a ii Guerra Mundial. Perderam-se milhões de empregos, centenas de milhares de negócios. Um grito por justiça racial, que vem de há 400 anos atrás, move-nos. O sonho de justiça para todos não mais será deferido”, prometeu o novo Presidente.
“Restaurar a alma e assegurar o futuro da América requer muito mais que palavras. Requer a mais alusiva de todas as coisas numa democracia: unidade”, rematou Biden, perante uns mil dirigentes convidados, com o mundo inteiro a assistir por livestream. Discursou na ala oeste do Capitólio, “este solo sagrado”, cujas fundações foram violentamente abaladas por uma turba de apoiantes de Donald Trump ainda há dias.
Ausências
Desta vez, em tempo de pandemia, nem pensar em juntar as centenas de milhares de pessoas que se costumam reunir no Passeio Nacional para assistir à tomada de posse de cada novo Presidente. Mesmo alguns altos dirigentes não puderam comparecer, como o governador da Califórnia, Gavin Newson, cujo estado enfrenta um mortífero pico de covid-19.
A mais notória – mas esperada – ausência foi mesmo a do próprio Presidente cessante, Donald Trump. Para salvar a face dos republicanos compareceu o seu vice-presidente, Mike Pence, bem como o antigo Presidente George W. Bush, secundado pelo resto dos antigos Presidentes vivos, os democratas Bill Clinton e Barack Obama – o velhinho Jimmy Carter, com 96 anos, manteve-se em isolamento na sua casa na Geórgia, mas fez chegar os seus cumprimentos ao novo Presidente.
É difícil imaginar que o rancor, frustração e negação demonstrados por Trump não destoassem entre a boa disposição dos antecessores, que nos últimos tempos se juntaram em várias campanhas – primeiro angariando fundos para vítimas de furacões no Texas, Florida e Porto Rico, mas recentemente voluntariando-se para receber publicamente a vacina da covid-19, para fomentar a confiança dos americanos mais céticos.
De facto, Trump já avisara que não estava para se juntar ao clube de antigos Presidentes. “Não creio que me vá integrar muito bem”, admitiu, numa entrevista em 2019 com Kate Anderson Bowe, autora do Team of Five: The Presidents Club in the Age of Trump, citada pela People. “Sou um tipo de Presidente diferente”, acrescentou.
Como que para consolidar a distinção, Trump – o primeiro Presidente moderno a recusar reconhecer a vitória do seu adversário – apressou-se a sair da capital antes da tomada de posse de Biden, a bordo do Airforce One, rumo ao seu resort de luxo em Mars-a-Lago, na Florida.
Trump – ao som da conhecida música YMCA, o hino gay que alguém achou adequado para a despedida de um Presidente conservador – assegurou que voltaria “de alguma forma” à Casa Branca, mas pode ser uma promessa impossível de cumprir. Tem pela frente o seu segundo julgamento de impeachment, desta vez sob a acusação de incitamento da invasão do Capitólio, e pode acabar impedido de se recandidatar em 2024.
Poesia e recados
Esta quarta-feira pode ter sido uma celebração da sua vitória, mas Joe Biden e Kamala Harris tiveram de partilhar a ribalta com a poetisa Amanda Gorman, de 22 anos, a mais jovem que alguma vez declamou numa tomada de posse presidencial, cujo poema “The Hill We Climb” “capturou o momento”, gabou o New York Times – aliás, “roubou o espetáculo”, acrescentou o Guardian.
“Como poderia a catástrofe alguma vez prevalecer sobre nós?”, questionou Gorman, face a um Presidente que herdou crise em cima de crise. “Não vamos marchar de volta ao que foi, mas mover-nos para o que será, um país ferido, mas inteiro e benevolente”, previu a poetisa.
É que Biden e Kamala não têm grandes desculpas para não conseguir transformar o seu país. Sim, terão de lidar com uma maioria conservadora no Supremo Tribunal, legada por Trump, que pode influenciar legislação durante décadas – mas os democratas desfrutam de uma rara maioria na Câmara dos Representantes e no Senado que lhes permitirá avançar com as suas reformas a todo o vapor. Por mais que os republicanos tentem reorganizar-se ou que apoiantes de Trump tentem ripostar, o futuro da América está nas mãos dos novos inquilinos da Casa Branca.