O lançamento do Let It Be, último álbum dos Beatles, em 1970, pode representar para os fãs o fim da sua banda de eleição, mas para os ‘Fab Four’ era o fim de um pesadelo.
Além do sucesso e dinheiro, existia uma nuvem de pressão, ansiedade e conflitos internos que advinham de fazer parte da maior e mais popular banda do mundo.
Apesar de o primeiro Beatle a manifestar vontade de sair do grupo ter sido George Harrison, foi Paul McCartney quem, oficialmente, anunciou que iria abandonar o quarteto, que prontamente se desmantelou.
No entanto McCartney rapidamente se arrependeu de ter batido com a porta, e foi dos poucos membros da banda a insistir no regresso do conjunto e dos concertos. No início dos anos 1970, procurou afogar este arrependimento com álcool na sua quinta no meio de nenhures em Campbeltown, na Escócia.
A cura para a depressão e para exorcizar a vontade de regressar aos Beatles foi a mesma de sempre: a música.
Neste contexto, o baixista lançou McCartney, com clássicos como ‘Maybe I’m Amazed’, o primeiro disco de uma trilogia, cujo último volume foi editado em dezembro do ano passado.
Mudar o mundo um nicho de cada vez
O ponto de ligação entre os álbuns que compõem a trilogia é o facto de McCartney ter tocado todos os instrumentos no disco de 1970, em McCartney II, lançado em 1980, e em McCartney III (apesar de ter quebrado a regra neste disco com a participação de dois convidados na faixa Slidin’).
Em comum, também existe o facto de todos terem sido criados durante períodos tumultuosos da vida do músico.
Se o primeiro tinha em pano de fundo o final dos Beatles, o segundo foi criado após a dissolução dos Wings, segunda banda de Paul, que criou uma quantidade respeitável de êxitos.
McCartney II, apesar de ter sido repudiado pelos críticos à data do seu lançamento, é um dos álbuns mais ambiciosos e experimentais do autor. Em vez de se deixar influenciar pelo rock n’ roll ou o blues, como habitual, apresentou uma abordagem mais virada para a eletrónica e new wave de bandas como os Talking Heads ou os Kraftwerk.
Questionado pela Quietus sobre se quando criou este disco de culto procurava criar uma peça avant-garde, McCartney explicou que estava apenas fascinado com as possibilidades que os sintetizadores abriram para a criação musical. «Era uma tecnologia nova e eu queria experimentar e perceber o que conseguia fazer com ela».
Anos mais tarde, músicos como Alexis Taylor dos Hot Chip ainda abordam a importância que músicas como ‘Check My Machine’ tiveram nas suas vidas, e McCartney recorda, surpreendido, como DJ’s ainda passam ‘Temporary Secretary’ em clubes noturnos.
«[McCartney III] é uma notícia excitante para uma geração de fãs que tem uma estima maior pela Temporary Secretary do que pelo Sgt. Peppers», dizia uma crítica publicada na Pitchfork.
Combater o aborrecimento
McCartney III também nasceu num contexto caótico – o que pode ser mais caótico do que tentar sobreviver a uma pandemia?
As sessões tiveram início de forma descomprometida, tentando combater o aborrecimento gerado pela quarentena.
O músico explicou à NPR que começou a frequentar regularmente o seu estúdio para descomprimir de todos os problemas causados pela covid-19.
«Escrevia uma música e ia [ao estúdio] gravá-la, ou então pensava: ‘Ainda tenho esta canção que comecei a desenvolver no ano passado, mas nunca a terminei’. Não existiram preocupações nestas sessões», disse. «É por isso que este disco tem um sentimento de descontração tão grande».
Apesar de não ser tão ambicioso como os primeiros ‘McCartneys’, o terceiro disco da série não precisa de o ser. Aos 78 anos, Paul já compôs a sua dose de músicas que moldaram o mundo, por isso ganhou o direito de criar o que lhe der na gana, seja em álbuns onde revisita as suas músicas mais famosas com arranjos inspirados na música clássica, como em Working Classical, seja nas experiências eletrónicas dos seus projetos paralelos, The Fireman ou Liverpool Sound Collage.
Por Isso, se quiser criar um disco para se abstrair da terrível realidade que a humanidade está a enfrentar, Paul McCartney está mais do que no direito de o fazer.