Com o Presidente Joe Biden a ambientar-se à Casa Branca e Donald Trump de regresso ao seu luxuoso resort em Mar-a-Lago, na Florida, a América prepara-se para mudar de rumo, interrogando-se quanto ao legado que o Presidente derrotado deixa para trás. Para já, o certo é que Trump abandonou o seu cargo como lá chegou: historicamente impopular, imerso numa versão alternativa da realidade, próximo da extrema-direita e ensombrado por escândalos.
Face à ruína do seu império comercial e cada vez mais isolado politicamente, Trump passou o seu último dia como Presidente a preparar o futuro, recompensando aliados leais e recuperando velhos apoios. Revogou as chamadas diretivas para «drenar o pântano» – que assinou no início do seu mandato, proibindo funcionários da sua administração de integrar grupos de lóbi durante cinco anos, de maneira a evitar tráfico de influências – e ofereceu uma torrente de perdões presidenciais, mais de uma centena, boa parte deles a apoiantes seus.
Até agora, praticamente todos os Presidentes fizeram uso dos perdões, vestígio dos antigos privilégios dos reis britânicos, como ato de misericórdia desinteressada – com exceções notórias, claro, como quando George Bush sénior perdoou condenados no caso Irão-Contras, em que era acusado de estar envolvido, ou quando Bill Clinton perdoou Marc Rich, o «rei do petróleo», acusado de corrupção, cuja ex-mulher era das maiores financiadoras democratas.
Contudo, quase toda a lista de gente perdoada por Trump – um antigo apresentador do reality show The Apprentice, obcecado com televisão, que sabe bem o que vale a fama – lê-se como uma mistura entre criminosos de colarinho branco, apoiantes seus, celebridades ou casos apadrinhados por celebridades.
Entre as figuras mais conhecidas (ver textos ao lado) incluem-se os rappers Lil Wayne e Kodak Black e o produtor Harry-O, por quem Snoop Dog fez campanha, bem como Elliot Broidy, um dos maiores financiadores dos republicanos, que confessou ser pago pela China para influenciar a administração Trump, e Steve Bannon, fundador do Breitbart, um site que em tempos foi um dos grandes pontos de encontros da extrema-direita.
Bannon é uma personagem saída das primeiras temporadas da saga Trump. É considerado o cérebro por trás da reta final da campanha de 2016, responsável pelas políticas mais duras e a retórica mais inflamatória quanto à imigração, que tentou arquitetar uma frente internacional de nacionalistas, com apoios como Jair Bolsonaro, Marine Le Pen ou Matteo Salvini. Acabou despedido no ano seguinte, quando era descrito como «o homem por trás de Trump», nas palavras do Politico – o então Presidente nunca gostou que lhe roubassem a ribalta.
Que Trump tenha optado por resgatar Bannon agora, quando é acusado de fraude e desvio de fundos, pode ser sinal de um foco acrescido nas franjas mais radicais dos republicanos. Além disso, o perdão presidencial tem o efeito de deixar o destino de Bannon intrinsecamente ligado ao de Trump – especialistas legais têm indicado que, caso este seja alvo de um impeachment bem-sucedido, mesmo após deixar a Presidência, os seus perdões poderão deixar de ser válidos.
«Nem Richard Nixon perdoou os seus capangas à saída», lamentou Noah Bookbinder, diretor da Cidadãos pela Responsabilidade e Ética em Washington, citado pelo Guardian. «Espantosamente, nas suas últimas 24 horas em funções, Donald Trump arranjou mais uma maneira de ficar abaixo do padrões éticos de Nixon».
Contudo, nem todos conseguiram receber o tão desejado perdão presidencial. Trump ignorou completamente os apelos dos amotinados que invadiram o Capitólio em seu nome – talvez por saber que um perdão poderia ser uma prova incriminatória caso seja indiciado judicialmente por incentivo à insurreição – e até do seu advogado pessoal, Rudy Giuliani, que sempre se manteve um dos seus mais leais apoiantes.
O antigo presidente da Câmara de Nova Iorque até foi o rosto da campanha falhada para reverter os resultados eleitorais, com 64 derrotas legais, nas mais variadas instâncias. Pelo meio, tornou-se alvo de chacota nacional, com uma série de incidentes bizarros, para delícia dos críticos.
Giuliani marcou uma conferência de imprensa numa loja de jardinagem, por engano, ao lado de uma sex shop e de um crematório; foi filmado a meter as mãos nas virilhas, sozinho num quarto de hotel com uma rapariga que pensava ser menor, que afinal era uma atriz no papel de irmã de Borat; parece ter sofrido forte flatulência durante uma audiência com um juiz, com o microfone ligado; a meio de outra conferência de imprensa começou a escorrer-lhe uma substância viscosa da cabeça, que se suspeita ser tinta para cabelo.
Trump ficou tão insatisfeito com o serviço que recusou pagar a conta do advogado ou mesmo as suas despesas, segundo o Washington Post. A hipótese de receber um perdão de Trump ficou fora de questão, mesmo quando mais precisava – Giuliani está a ser investigado por tentar vender um perdão presidencial por dois milhões de dólares, o ano passado, avançou a NBC.
Quem também ficou de fora foi o próprio Presidente e a sua família, após meses de especulação na imprensa. Por um lado, um perdão daria jeito a Trump, que é investigado por fraude e evasão fiscal em Nova Iorque, podendo ser acusado de incentivo à insurreição, devido ao caos no Capitólio. Por outro lado, não há certezas de que o autoperdão fosse sequer legal – não há qualquer precedente – e dirigentes republicanos terão ameaçado retirar a sua proteção ao Presidente, no julgamento de impeachment que tem pela frente, caso se perdoasse a si mesmo e à sua família, avançou a CNN.