Por Carlos Abreu Amorim
1. Em 5 de julho de 2004, Durão Barroso, tendo em vista a candidatura à presidência da Comissão Europeia, demitiu-se de primeiro-ministro. Jorge Sampaio hesitou mas acabou por aceitar a substituição que o PSD lhe pedia e indigitar Santana Lopes. A 9 de julho, Ferro Rodrigues abandonava a liderança do PS, ressentido, considerando que a decisão de Sampaio era «errada e perigosa» declarando-se em «frontal oposição ao Presidente». É impossível compreender a decisão de Jorge Sampaio sem abranger o remate final da intenção presidencial cinco meses depois, com a dissolução da Assembleia da República e a convocação de Legislativas antecipadas.
Para além das razões que a memória histórica de Jorge Sampaio persista em querer deixar como legado pessoal, as decisões de julho e de dezembro de 2004 foram a concretização de um dos mais astutos cálculos políticos que a nossa democracia conheceu. Se as eleições tivessem sido convocadas no verão de 2004 o PSD seria vencedor com muita probabilidade. Quer com Durão Barroso, se este acabasse por ficar, ou com Santana Lopes, este último emergindo da Câmara de Lisboa e livre do desgaste que mais tarde veio a sofrer. Mas a razão principal para o compasso de espera que Sampaio pretendia era a situação de Ferro Rodrigues.
No verão de 2004 o PS estava intensamente debilitado. Primeiro, pelo escândalo Casa Pia que parecia ser o exclusivo foco político dos socialistas – até com a divulgação de escutas que incluíam o próprio Jorge Sampaio. Depois, porque Ferro Rodrigues nunca conseguiu fazer uma oposição consistente e afirmar-se como alternativa. Após a obtenção de resultados meritórios nas Legislativas de 2002 (37,8% face aos 40,1% do PSD de Durão Barroso), o PS de Ferro Rodrigues perdeu o sentido estratégico e foi-se tornando irrelevante. Com o alarde mediático da Casa Pia e o clima de suspeição que se gerou, arrastava-se penosamente em fugas para a frente, inconsequentes e sem futuro. Sampaio precisava de uma mudança no PS antes de provocar eleições antecipadas. A saída de cena de Ferro e o despontar de Sócrates serviu-lhe os intentos na perfeição. Então sim, agiu.
2. Quando a pandemia atenuar os seus trágicos efeitos na saúde dos portugueses a crise económica ficará por muito tempo. No combate à covid-19 o Governo evidenciou uma triste incapacidade de planear, organizar e antecipar: regras de confinamento light transbordando de exceções incompreensíveis, falta de rigor em medidas quase sempre tardias e plena de passos à frente logo seguidos de flic-flac à retaguarda, a negação e a consequente falta de preenchimento de lacunas no SNS, uma governação de anúncios mas sempre hesitante na decisões concretas. O que originou a tempestade perfeita e redundou num dos piores desempenhos do mundo. Quem esteve tão mal a dirigir o combate contra a pandemia não conseguirá fazer muito melhor na recuperação económica. Não há bazooka europeia suficiente para as dificuldades que se avizinham.
António Costa não é um governante para horas difíceis. Sobressai bastante mais em tempos de bonança quando o sorriso fácil é uma arma política, em que abundam soluções para tudo e há margem de manobra para os erros de casting e de percurso. À sua disposição tem, talvez, o pior elenco governativo da história da nossa Democracia pós-PREC e o plano Costa e Silva que se limita a constatar, pomposamente, o caráter molhado da chuva. Tudo concorre para as coisas não corram bem…
Marcelo Rebelo de Sousa sabe isso melhor do que ninguém. Contudo, dificilmente poderá alterar este estado de coisas. Os partidos à esquerda do PS tornaram-se irrelevantes com a ‘geringonça’. E o esbarrondamento do espaço não socialista não lhe oferece opções. O CDS quer resolver a sua crise profunda cometendo hara-kiri. O Chega só continuará a crescer se mantiver bem alto os decibéis de partido de protesto contra tudo e todos. E o PSD não se afirma, não convoca figuras nem ideias, não constrói abrangências nem oferece credibilidade necessária para a alternância no poder. Tal como o PS de Ferro, em 2004, o PSD de Rio, em 2021 está tolhido nas incoerências da sua liderança. Rio, por culpa própria, não é alternativa a Costa. Aliás, transformou-se precisamente na garantia política de que Costa não tem alternativa.
Neste quadro, o Presidente da República não tem soluções para mudar a lógica dos acontecimentos. Quando a covid-19 passar, não poderá pressionar um mau Governo com a hipótese de um outro que não existe. Costa sabe-o bem – por isso, não está preocupado como devia.
Marcelo, daqui a alguns meses, estará na situação de Sampaio no verão de 2004 – quererá agir mas não pode. Contudo, ao contrário de 2004, não tem à sua disposição, para já, um recurso dilatório que lhe permita ganhar o tempo de que precisa. Sem solução política à vista, o Presidente da República pode ser forçado a atravessar um dos períodos mais difíceis da nossa história com um Governo que sabe incapaz e sem engenho para se autorregenerar. E só procurará fazer uma alteração substancial das coisas quando existir uma opção credível de alternância. Com Rui Rio a líder do PSD, amanhã não será a véspera de tal dia…