Cerca de 500: este é o número aproximado de e-mails que têm chegado à Provedoria de Justiça naquilo que diz respeito às reclamações feitas pelos cidadãos que se viram impedidos de votar, nestas eleições presidenciais.
Ao Nascer do SOL, a Provedoria acrescenta que estes e-mails são "em geral dirigidos simultaneamente a várias entidades, entre as quais a Comissão Nacional de Eleições, manifestando descontentamento pela situação vivida, designadamente de pessoas que se viram impossibilitadas de votar por estarem confinadas a partir de data posterior ao limite legal e, em alguns casos, de pessoas a viver no estrangeiro e impossibilitadas por esse Estado de se deslocarem ao consulado português".
Neste último caso, "tratava-se de matéria que ultrapassava a área de competência da Provedora de Justiça", explicou a mesma. Por outro lado, realçou que "nos poucos casos em que se verificou não estar em causa obstáculo legal, mas sim hipotético problema de funcionamento administrativo, por exemplo do sistema informático, a Provedoria de Justiça encetou os contactos necessários junto das entidades competentes, tentando a sua superação" – sendo que, quanto às queixas que incidiam sobre aspetos do regime legal, encontram-se em análise.
Na sua perspetiva, o voto antecipado funcionou?
Luís Newton (L.N.): Estamos a assistir àquilo que, em bom rigor, aconteceu sempre. Mas aquilo que não decorria noutras eleições era o voto antecipado. O problema da existência do ato eleitoral prévio ao dia das eleições presidenciais tem duas dimensões. Uma é o voto antecipado em território nacional – destinado aos doentes internados em estabelecimentos hospitalares, aos presos não privados de direitos políticos, aos cidadãos em mobilidade e àqueles que cumprem confinamento obrigatório – e a outra passa pela votação no estrangeiro. É normal, quem está a lidar com milhares de votos, enviar votos de uma determinada junta para outra. E acabamos por ter votos que são inutilizados.
Quais são as principais lacunas?
L.N.: Os votos nem sempre vêm com as secções definidas, temos de tentar perceber. Uns são enviados para as juntas de freguesia através de correio e, no meio deste circuito, são juntos em pacotes e depois há outra questão que se prende com o facto de existirem votos que pertencem a uma freguesia e são enviados para outra. Na maior parte das vezes, esta situação é verificada antes do término do ato eleitoral e faz-se chegar os votos à freguesia certa, porém, em algumas ocasiões, as mesas de voto apenas tratam os votos dos eleitores de determinada freguesia e devolvem aqueles que não lhe pertencem.
Qual é o processo pelo qual passam os votos dos emigrantes até chegarem a Portugal?
L.N.: O cerne da questão é que podem ou não chegar a tempo tendo em conta a demora dos serviços postais. Imaginemos que um cidadão português vota numa cidade e, no dia seguinte, é feriado na mesma. O voto pode chegar cá dois, três, quatro dias depois. Hoje é quinta-feira e continuam a chegar votos à minha junta de freguesia. Para participarem nas eleições de domingo passado, os portugueses residentes no estrangeiro – entre 12 e 14 de janeiro – deviam apresentar-se nas representações diplomáticas, consulados ou nas delegações externas das instituições publicas portuguesas definidas pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros para votar presencialmente ou, caso tivessem decidido votar por via postal, preencher o boletim enviado pelo ministério anteriormente referido. Posteriormente, os votos seriam enviados para as mesas de voto de origem de cada eleitor.
O voto ao domicílio foi bem-sucedido?
L.N.: Tive conhecimento de situações em que as pessoas tinham pedido para irem buscar os votos e ninguém apareceu porque alegadamente não estavam registados ou não se tinham inscrito a tempo. Para além desta falha, tínhamos um acordo com as corporações de ambulâncias e, por muitas terem ficado retidas, houve eleitores que ficaram sem transporte e não puderam votar.
E há quem nunca possa votar se não tiver auxílio de terceiros, como os 1,4 milhões cuidadores informais.
L.N.: Sim, há uma dimensão de pessoas que não está formalmente reconhecida no âmbito das suas atividades, em termos não oficiais e até públicos. Por um lado, queremos ao máximo criar condições para reconhecermos os cuidadores informais como elementos estruturantes de apoio à comunidade mas, por outro lado, não criamos as ferramentas para que possam beneficiar das mesmas condições e apoios.
Nos EUA, por exemplo, existe um sistema misto de voto: nas urnas, eletrónico ou por correspondência. Seria difícil implementá-lo em Portugal?
L.N.: Num momento em que procuramos outras formas de votar e criou-se a hipótese de votar antecipadamente, e com tantas pessoas a quererem assegurar o seu voto, temos um sistema que não tem destreza e eficácia suficientes. Assistimos a um sufrágio com a impossibilidade das pessoas verem o seu voto expresso. Estamos a cortar a principal garantia da democracia, a escolha dos nossos representantes.
A democracia acaba por ser descredibilizada.
L.N.: Se Marcelo Rebelo de Sousa não tivesse tido a vantagem que teve, em relação aos restantes candidatos, se ganhasse na primeira volta por uma diferença de somente milhares de votos, as forças políticas colocariam em causa o sistema eleitoral. É gravíssimo que uma pessoa não possa votar ou que um voto seja inutilizado, quanto mais um número maior. Um único voto pode ser decisivo em eleições locais, em que há representantes eleitos por vinte votos. Em Portugal, existem 3.091 freguesias, portanto, se três pessoas não votarem ou a sua decisão não for contabilizada, estaremos perante 9.273 votos perdidos.
Qual é o passo a tomar, em termos legislativos, para contornar estes obstáculos?
L.N.: Não há uma solução para tudo. O mais importante é que a Assembleia da República prepare uma comissão, que junte pessoas qualificadas para debater esta matéria e proceder às alterações necessárias. Temos confrontos eleitorais, em autarquias, que se resolvem com a diferença de meia dúzia de votos. E, de repente, estamos perante esta situação. As pessoas começam a sentir que se não estiverem fisicamente, no dia da eleição, em frente à urna, o seu voto não terá validade.
Será que o voto antecipado não foi acautelado devido à pandemia?
L.N.: Foi a solução possível tendo em conta todas as condicionantes desta pandemia e começou a ganhar adeptos. Tivemos mais de 200 mil pessoas inscritas no voto antecipado. E há aspetos que têm de ser adaptados. Sei de situações de pessoas, por exemplo, o caso de uma senhora que se inscreveu antecipadamente, teve um acidente de automóvel no dia em que era suposto votar e o mesmo resultou na sua impossibilidade de cumprir este direito e dever. Então, decidiu votar no domingo. Dirigiu-se à secção de voto e não podia votar porque o nome estava “descarregado”, não tinha comparecido à mesa de voto no domingo anterior.
Este tipo de testemunhos é específico, no entanto, tem o seu quê de universalidade.
L.N.: Apesar de valorizar a questão individual de cada uma das histórias, é importante olhar para o impacto global de cada uma delas. Porque as falhas acontecem em algum momento no sistema eleitoral mas, quando ganham regularidade, é perigoso. Eu estava numa secção de voto a dar apoio aos eleitores. E percebi que havia pessoas desorientadas com a inexistência do número de eleitor, por exemplo. E a tal senhora que tinha tido o acidente explicou-me que já tinha feito a observação a quem de direito, ao presidente da mesa de voto. Já tinha uma certa idade e eu tive o cuidado de dizer que não se pode culpabilizar nenhum partido, temos é de fazer uma reflexão acerca do modelo que temos e daquele que queremos ter.
O modelo atual contribui para o desinteresse dos eleitores?
L.N.: A fraca adesão eleitoral que vamos tendo prova que este sistema não funciona. A título de exemplo, nas últimas eleições para a Presidência da República, em 2016, a taxa de abstenção foi de 51,3%. Votaram apenas cerca de cinco milhões de portugueses (5.569.741), quando estavam inscritos quase 11 milhões (10.857.196). E desses 11 milhões, 14% eram cidadãos nacionais residentes no estrangeiro (1.511.174). Podemos e devemos avançar para uma solução como o voto eletrónico, mas devemos estar preparados para um modelo misto porque a utilização exclusiva das tecnologias acabaria por conduzir à exclusão de quem não lida com as mesmas. Todavia, pode ser um dos elementos da reforma.
E que outras modificações defende?
L.N.: Acredito, por exemplo, que devemos eliminar o sábado de reflexão. Que sentido faz se há pessoas que votam uma semana antes? Perante aquilo que tem sido o desenvolvimento de alternativas ao mecanismo eleitoral, como o alargamento do voto antecipado, generalizou-se mas parece, particularmente, que não é o dia de reflexão nem as campanhas que mudarão os sistemas eleitorais. A maior parte das pessoas fecha a sua decisão quinze dias a uma semana antes. E os debates também vão ao encontro desta questão. Tem de se criar uma alternativa para que todos sintam que há resposta para a sua opção.