Marta Temido tem vindo a perder serenidade

As denúncias sobre vacinas que foram desviadas para pasteleiros, primos e outros familiares próximos diz tudo sobre o que de pior pode existir sobre o ‘salve-se quem puder ‘. Há lições que já deviam ter sido retiradas de situações ilegítimas do nosso passado coletivo. Deste ponto de vista, a saída de Francisco Ramos tornou-se inevitável.…

por Judite de Sousa
Jornalista

Marta Temido está no epicentro do furacão. Tal decorre da crise pandémica e da sua condição de ministra da Saúde. A sua tarefa é hercúlea. Vive cercada pela adversidade da situação e pelas múltiplas vozes que questionam o seu trabalho que é de uma enorme imprevisibilidade. É raro o dia em que há uma notícia positiva sobre a gestão da pandemia cuja responsabilidade última é de Marta Temido. É natural que assim seja. Assim como é uma obrigação os governantes darem explicações e justificarem-se perante os governados. Tentar inverter esta lógica é um atentado contra a democracia. Não perceber isto e não entender, como tem sido o caso, o poder da imagem e as regras da democracia televisiva é de uma profunda ingenuidade.

Marta Temido não tem sabido comunicar com serenidade, transparência e frontalidade. Começou bem mas tem vindo numa trajetória negativa que só lhe é prejudicial. Nas últimas semanas a ministra optou não pela omissão mas pelo negacionismo. A sobre-exposição com que se apresenta nos media prejudica-a. Apresenta um discurso defensivo, reativo, sem adesão à realidade. E qual é a realidade? Um serviço nacional de saúde fortemente pressionado, profissionais exaustos e voluntaristas, responsáveis hospitalares que apontam as falhas, denunciando a ausência de planeamento e de organização e lançando as culpas para os caminhos erráticos do Ministério da Saúde. Sim, porque a rota que tem vindo a ser seguida muda a cada 24 horas. A vida ensina-nos que a realidade é mais veloz e mutável do que as previsões por mais seguras que possam parecer. Vejamos: o colapso dos principais hospitais da Grande Lisboa não foi equacionado pelos responsáveis. O choque emocional que as imagens das filas das ambulâncias provocam em quem as vê geram estupefação e revolta. Exigem-se respostas. Assim como também foi recebida com incredulidade a notícia de que o hospital Amadora-Sintra ficou sem oxigénio. Não é convincente que o relaxamento no Natal e no Ano Novo tenha causado este desgoverno. E muito menos invocar a variante britânica que está identificada pelo menos desde janeiro. O que se fez? Pouco ou mesmo nada. Ficamos prisioneiros do ‘milagre’ português como se uma pandemia fosse uma questão de crença religiosa. Como se o quadro não fosse suficientemente grave, estamos confrontados com o escândalo das vacinas. O fenómeno é tipicamente português. Um dos obstáculos ao desenvolvimento do país é, desde tempos ancestrais, o amiguismo.

As denúncias sobre vacinas que foram desviadas para pasteleiros, primos e outros familiares próximos diz tudo sobre o que de pior pode existir sobre o ‘salve-se quem puder ‘. Há lições que já deviam ter sido retiradas de situações ilegítimas do nosso passado coletivo. Deste ponto de vista, a saída de Francisco Ramos tornou-se inevitável. Mas não. Os erros persistem e as respostas permanecem ambíguas. Quando há um problema, ele deve ser comparado sem complacência. Perante estes abusos, o Governo não pode dizer que não comenta casos concretos e que vai ordenar auditorias. É precisamente o contrário: os casos concretos devem ser comentados e agir imediatamente em conformidade. Sabemos que as auditorias arrastam-se no tempo e, normalmente, dão em nada.

É neste contexto adverso que se movimenta a ministra. Dela se espera um outro foco: comunicação política é diferente de comunicação da saúde. E nas circunstâncias atuais, é imperativo um gabinete de crise em termos comunicacionais que antecipe respostas e elimine palavras como criminosos, bullying ou as pessoas. As pessoas somos todos nós a começar pelos que têm que enfrentar com competência e sem crispação.