Reza a lenda que, no ano longínquo de 2005, astrólogos e adivinhos, consultados pelos generais birmaneses, profetizaram uma catástrofe iminente, que derrubaria o regime. Se não mudassem a capital de Rangum, perto da costa, para o coração do país, seriam invadidos. Por quem, não se sabia – talvez fossem os americanos, os chineses ou as muitas minorias étnicas que há décadas se sublevavam nas montanhas. O exército, ou Tatmadaw, escolheu uma localidade no meio da selva, longe de qualquer estrada e flagelada pela malária, que fora sede dos militares na II Guerra Mundial, quando combatiam ao lado dos japoneses contra os britânicos. Renomearam-na Nay Pyi Taw, ou ‘Morada dos Reis’.
Mas foi um reinado de pouca dura. Seis anos depois, os generais abriram parcialmente o país, deixando civis votar e aceitando um Governo de Aung San Suu Kyi, filha de Aung San, lembrado como ‘pai da nação’. No entanto, os militares não gostaram do resultado. Tomaram de novo o poder esta semana, com um golpe de Estado, após o Partido União, Solidariedade e Desenvolvimento (USDP), que os representa, eleger apenas uns humilhantes 7% dos deputados, nas eleições de novembro.
«Há duas coisas a recordar quanto ao Tatmadaw. Eles têm um ego enorme, por isso não gostam de perder eleições. E os seus níveis de paranoia são muito elevados», salienta David Eimer, antigo correspondente do Telegraph e do South China Morning Post na região, e autor do livro A Savage Dreamland: Journeys in Burma (Bloomsbury, 2019), à conversa com o Nascer do SOL, a partir de Banguecoque.
Trata-se de uma combinação perigosa, sobretudo numa organização que goza de tanto poder. Mesmo após aceitarem a transição para uma ‘democracia disciplinada’, os militares birmaneses mantiveram autonomia praticamente ilimitada, com 25% dos lugares no Parlamento garantidos – a margem necessária para bloquear alterações à Constituição – e controlo de ministérios cruciais.
Mas com tanto a seu favor, porque havia o Tatmadaw de arriscar tudo num golpe de Estado? Porque é que se pôs na mira da condenação internacional e da contestação dos birmaneses, mais de 80% dos quais votaram na Liga Nacional da Democracia (NLD), de Aung San Suu Kyi?
Já se vêm sinais de resistência nas ruas de Rangum, onde lojas, casas e pagodes foram decoradas com balões e fitas vermelhas, cor do NLD; ouvem-se panelaços todas as noites, por todo o país, e mais de 70 hospitais estão em greve contra o golpe, em plena pandemia; na sexta-feira, centenas de professores e alunos até ousaram manifestar-se, na Universidade Dagon. Muitos ostentavam a saudação de três dedos estendidos, emprestada dos filmes Hunger Games e do movimento pró-democracia tailandês. «Não queremos ditadura militar», gritavam, entre cânticos de «longa vida à mãe Suu», avançou a Associated Press.
Por mais riscos que implique um golpe de Estado, por mais poderosos que já fossem os militares birmaneses, «eles não tinham controlo sobre tudo», explica David Eimer. «E a questão é: porquê partilhar o poder quando se pode ter o poder todo?»
«Os generais, há uma década atrás, quando decidiram seguir pelo caminho de partilhar o poder, uma democracia parcial, pensavam que podiam chegar a uma posição semelhante ao que vemos na Tailândia, onde os militares basicamente controlam o Governo, seja civil ou não», considera o jornalista britânico. «O que as últimas duas eleições lhes mostraram, em 2015 e 2020, é que não há hipótese de isso acontecer. Os birmaneses não votam neles».
«E aí os generais têm de pensar: ‘O que é que vamos fazer? Porque se continuarmos por este caminho, com a NLD a ganhar maiorias enormes, a pressão vai intensificar-se para mudar a Constituição».
«Creio que vamos vê-los acusar tantas pessoas quantas conseguirem para que não possam ser deputados no futuro, por terem uma condenação criminal», prevê Eimer, numa altura em que mais de 130 dirigentes birmaneses foram detidos, informou a Associação de Assistência a Prisioneiros Políticos, sediada em Rangum, à AFP.
A própria Aung San Suu Kyi, detida esta segunda-feira, no primeiro momento do golpe, já foi acusada de importar ilegalmente dois walkie-talkies, após uma rusga à sua residência em Nay Pyi Twa – a pena pode chegar aos dois anos de prisão. «Tenho a certeza de que hão de arranjar maneira de banir a NLD. É a mesma coisa que fazem na Tailândia: os militares estão constantemente a banir partidos por motivos ilegítimos», avisa o jornalista britânico.
Entretanto, o Tatmadaw – sob a liderança do general Min Aung Hlaing, que já está sob sanções dos EUA pelo genocídio dos rohingya, uma minoria étnica muçulmana, no estado de Arracão – declarou um ano de estado de emergência, prometendo novas eleições após esse período. Mas os birmaneses, que passaram meio século sob um ditadura militar, sabem bem como um estado de exceção pode tornar-se eterno.
‘Exército colonial’
«É preciso pensar nas Forças Armadas birmanesas como uma espécie de um Estado dentro de um Estado», considera David Eimer. «Eles têm os seus próprios interesses económicos, têm as suas próprias empresas, têm hospitais, hotéis, companhias aéreas, canais de televisão, empresas de construção, têm tudo e fazem tudo separadamente»
«De facto, eles olham para os birmaneses comuns apenas como uma fonte de recrutas. Se és uma família pobre, do centro do país, e o teu filho é recrutado, então tens uma ligação aos militares. Mas os militares são uma elite isolada, especialmente nos escalões mais altos, obviamente. Aí, eles casam todos uns com os outros, todas as famílias estão ligadas».
Além de todas estas fontes de rendimento, os militares ainda contam com a exploração dos territórios fronteiriços, onde diferentes etnias – como os chin, no oeste, os cachins, no norte, ou xãs, no leste – sentem o peso da dominação dos bamar, a etnia maioritária. A união destes povos no que viria a ser o Myanmar, legado do domínio colonial, alimentou um sem fim de revoltas contra os bamar, e ainda hoje há milícias ativas espalhadas por todo o país.
«Os três ministérios que os militares controlavam no governo de Suu Kyi eram a Defesa, obviamente, o Interior e as Fronteiras. O que lhes dava completo controlo na maior parte das regiões, podiam fazer mais ou menos o que quisessem. Fosse expulsar rohingya ou gerir minas, o que seja», explica o jornalista.
«Eles agem como um exército colonial. Porque as forças armadas praticamente compostas apenas por bamar, há muito, muito poucas minorias. De facto, nem sequer podes chegar acima do escalão de major a não ser que sejas budista. Portanto, quando entram nas áreas de minorias étnicas são como invasores, como tropas portugueses de antigamente, a marchar Angola a dentro. A sensação é: 'vocês não têm nada a ver connosco’».
«E também se vê muito uma espécie de 'capitalismo de cessar-fogo', é assim que lhe chamam. Por exemplo, entras numa área de minorias étnicas e tentas que elas aceitem um cessar-fogo. Depois usas esse cessar-fogo para meter a tua gente na região, para tomar controlo da economia, em termos de extração de recursos, mineração, negócios agrícolas, grandes quintas… Tu lucras com isso, mas as populações locais não».
«Eles podem safar-se com muitas coisas nas áreas das minorias, porque poucos birmaneses comuns vão lá, poucos media também porque não se consegue entrar. O que se viu com os rohingya – violar mulheres locais, matar crianças, queimar aldeias – é o género de coisas que fazem desde os anos 40. Simplesmente não se sabe nada, mas todos os viram com os rohingya», aponta Eimer. E só soubemos por um motivo muito simples: o advento das novas tecnologias de comunicação. O genocídio, que envolveu todos os horrores imagináveis e inimagináveis, ficou registando em milhares de telemóveis de sobreviventes, entre as centenas de milhares de rohingya que fugiram de Arracão para o Bangladesh nos últimos anos.
Receio da China e más lições do Japão
No fundo da justificação do golpe de Estado estão alegações de fraude eleitoral nas eleições de novembro, com o USDP a pedir recontagem após recontagem, sem quaisquer ganhos, enquanto notícias falsas eram disseminadas em massa nas redes sociais. Não seria a primeira vez que supostas cabalas tinham um papel na campanha eleitoral – em 2015, os rumores eram do uso de yadaya, ou magia negra, escreveu na altura o Straits Times, relatando o surgimento misterioso de oferendas de comida debaixo de cartazes da Suu Kyi.
«Os generais vêm-se a si mesmos como quem conseguiu que a Birmânia tivesse independência do império britânico», refere Eimer, utilizando o antigo nome do Myanmar. «Vêm-se a si mesmo como os protetores do país, quem o manteve, mesmo face a todas as revoltas grupos étnicos minoritários nos territórios de fronteira. O facto de que as pessoas os odeiam é um golpe no seu ego»
«Provavelmente também estão paranoicos com o crescimento da influência chinesa na Birmânia. Dito isto, eles deixaram Suu Kiy sem outra escolha que não alinhar com os chineses. No momento em que eles fizeram a perseguição aos rohingya, a EU, toda a gente tirou do país os seus investimentos. Ninguém quer investir num país que está a fazer algo assim, exceto os chineses»
Mas então, Pequim não apoiou o golpe de Estado? Aliás, a China não bloqueou a condenação dos militares birmaneses pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, esta semana?
«Os chineses não têm outra opção que não apoiar quem quer que esteja no poder. Se não o apoiarem, todos os seus projetos de investimento acabam cancelados», explica o jornalista. Afinal, trata-se do maior investidor externo no Myanmar, com o equivalente a quase 18 mil milhões de euros injetados no país, segundo a Bloomberg.
Os chineses – apostados no maior projeto de infraestrutura da história, a Nova Rota da Seda, que pretende criar estradas, linhas de TGV e rotas marítimas para ligar comercialmente a China a pontos tão distantes como Europa e África – «estão desesperados para abrir o porto de Kyaukphyu, para terem acesso à Baía de Bengala. Isso significaria que os navios deles não tinham de navegar ao largo de Singapura, pelo Estreito de Malaca, onde podem ser emboscados por porta-aviões americanos», considera Eimer. «Os chineses não têm opção. Não adoram a Aung San Suu Kyi, mas ainda assim apoiaram-na. Tinham que o fazer».
Já o Japão, um dos maiores doadores de ajuda externa ao Myanmar, também deverá continuar envolvidos com o regime. «Os japoneses vão continuar no país, porque têm de contrabalançar os chineses. A Birmânia é onde a China e o Japão lutam por influência no Sudeste Asiático, é muito importante para eles», considera. «Os japoneses têm laços históricos profundos com o país. Um dos motivos porque o Tatmadaw é como é, é porque foi treinado pelo exército imperial japonês, durante a II Guerra Mundial. E o velho exército japonês não era muito agradável».
Aliás, o próprio Aung San, ‘pai da Nação’ e de Suu Kyi, foi formado no Japão, durante a II Guerra Mundial. As milícias que criou – que se tornariam no atual Tatmadaw – ficaram conhecida pelos massacres e atrocidades contra os karens, uma etnia do sul, que os britânicos recrutavam com frequência, bem com contra populações não-budistas.
«Os japoneses não vão retirar os seus investimentos, talvez os sul-coreanos o façam, mas provavelmente não. Países asiáticos geralmente não se sancionam uns aos outros, porque todos – não todos, mas muitos – têm problemas», considera Eimer. «E é só disso que os generais querem saber. Eles não querem saber se Washington os sanciona, o que é que Washington vai fazer? A maioria já está sob sanções pelo que fizeram aos rohingya. E a América têm muito pouco investimento em Burma, os únicos que os preocupam são os chineses, japoneses e sul-coreanos»
Queda em desgraça
Mais uma vez, Suu Kyi dá por si em prisão domiciliária. Herdeira do legado do seu pai – «na Ásia acontece muito este género de dinastias, onde o poder político é passado de geração em geração, como com os antigos reis e rainhas da Europa», clarifica Eimer – traçou o seu próprio caminho como líder do movimento pró-democracia. Contudo, ao contrário dos quase 15 anos que passou nas mãos dos militares, entre 1989 e 2010, quando até recebeu um Nobel da Paz, a líder já não é vista como um ícone pela comunidade internacional.
Ver Suu Kyi perante o Tribunal Penal Internacional, em 2019, a defender as ações do Tatmadaw, acusado de genocídio contra os rohingya, quebrou todas as ilusões. Que a líder conseguisse minimizar as imagens de tortura, violações e homicídios sistemáticos, com um povo inteiro como alvo, chocou o mundo.
«Foi a expressão última de certas características de Suu Kiy que eram menos familiares àqueles que a viam de forma muito superficial, simplificada, mas que se tornaram cada vez mais evidentes à medida que o tempo passava», assegura Francis Wade, autor do livro Myanmar’s Enemy Within: Buddhist Violence and the Making of a Muslim ‘Other’ (Zed Books, 2017), ao Nascer do SOL.
Para o jornalista, é claro que na líder birmanesa sempre houve «indiferença quanto ao destino dos rohingya; uma recusa cada vez mais teimosa em ceder a exigências ocidentais; desprezo por valores liberais de direitos humanos quando entravam em conflito com o seu próprio chauvinismo étnico, ou ameaçavam o seu apoio popular», enumera Francis. «Muitos assumiram que ela estava a abandonar os seus velhos valores de igualdade e tolerância. Mas, de facto, havia uma continuidade na sua defesa dos esforços dos militares para expulsar uma comunidade impopular».
David Eimer concorda. «Desde que a perseguição começou, nos anos 60, os rohingya sempre foram um alvo fácil para os militares», salienta. «Eram relativamente recém-chegados à Birmânia, muitos rohingya vieram no séc. XIX, alguns antes. Além disso são muçulmanos, e a Birmânia é um país muito budista. E são pobres, não tinham nenhuma milícia a sério que pudesse ripostar, o exército podia fazer o que lhe apetecesse», prossegue. «Tiveram azar, a perseguição era uma maneira ótima de distrair as pessoas do facto de que a economia estava um desastre».
«O problema para os Governos ocidentais agora é que Suu Kiy, esta pessoa que mostrou tão pouca consideração pela segurança de uma minoria vulnerável, é de facto a sua única testa-de-ponte em Myanmar», nota Wade.
«Suu Kyi centralizou o poder que estava disponível para um líder civil nas mãos dela, e não deu espaço para o surgimento de outra figura política com quem Governos ocidentais pudessem negociar», avalia o jornalista. «Portanto, por mais pontes que pareça que ela queimou, se a Europa e os EUA quiserem afirmar os seus interesses em Myanmar, então é através dela que terão de o fazer».
A relação entre Suu Kyi e o Ocidente, que azedou nos últimos tempos, sempre foi algo que deixou o Tatmadaw desconfortável. Sempre suspeitaram do facto de ela ter ido estudar para a Universidade de Oxford, ou que tivesse casado com um britânico. Aliás, fizeram questão de introduzir uma alínea na Constituição, talhada à medida da líder, que proíbe cidadãos com familiares estrangeiros de se tornarem chefes de Estado – Suu Kyi tem dois filhos britânicos.
A profunda paranoia do Tatmadaw está gravada na história do Myanmar.Talvez não haja melhor exemplo que o ciclone Nargis, em 2008, a mais terrível catástrofe natural na história birmanesa, que matou mais de 130 mil pessoas. O ciclone parecia o começo do fim do mundo, devastado o país, causando cheias e deslizamentos de terras. Mas, mesmo assim, os generais recusaram deixar aterrar qualquer aeronave estrangeira, mandando para trás carregamento atrás de carregamento de ajuda humanitária. «É completamente louco, mas eles viram os aviões, viram barcos da marinha ao largo, a oferecerem-se para ajudar e pensaram: 'Estamos a ser invadidos, vamos ser derrubados'», lembra o jornalista.
Agora, com o golpe de Estado desta semana, o ego ferido e loucas teorias da conspiração do Tatmadaw viram-se de novo contra os birmaneses. Que tentam resistir, pouco a pouco.
«As pessoas da Birmânia lembram-se do que acontecia quando protestavam, nos tempos da junta militar. Em 1988, o exército abriu fogo contra eles, provavelmente mataram umas três mil pessoas, são muitos civis. Pode acontecer outra vez. Nunca se sabe com o Tatmadaw», alerta Eimer. «A outra coisa de que precisamos de nos lembrar sobre os militares birmaneses é que as pessoas têm medo deles. Ninguém se quer meter com eles».