O êxito de Marcelo responsabiliza-o

O recente resultado de Marcelo para a Presidência da República traduz pessoalmente um êxito político maior ao obtido por Mário Soares em 1986.

O resultado eleitoral foi politicamente superior ao de Mário Soares em situação análoga no ano de 1986.

Escrevo sob o severo desgosto da morte inesperada de um filho. Provação contranatura, dor profunda, saudade imensa. Contudo, sinto-me com a justificação cívica de contribuir para o restabelecimento da verdade. Regresso ao subtítulo do artigo: O recente resultado de Marcelo para a Presidência da República traduz pessoalmente um êxito político maior ao obtido por Mário Soares em 1986, apesar da percentagem de votos deste exceder os 72%. Explicarei porquê, mas antes, focalizando-me na atenção dos mais jovens, lembrarei que fui com José Gomes Mota e Manuel José Homem de Melo um dos três colaboradores de Soares mais atuantes no processo. Uma explicação para que não restem dúvidas.

Cinco anos antes encontrava-me em fase de reintegração no nosso país, após seis de vida profissional, nem sempre cómoda de início, em Espanha, entre Madrid e Catalunha, singrando não só no seio de médias empresas, mas através da vice-presidência da Associação Industrial Portuguesa, organismo ao tempo correspondente a um núcleo de criatividade exemplar de expressão representativa. Nessa condição, encontrei-me com Mário Soares, contemporâneo da Faculdade de Direito de Lisboa, embora dez anos mais velho, pois antes cursara histórico-filosóficas sem grandes perspetivas de realização pessoal, visto que as atitudes assumidas na oposição ao Regime o inibiam de acesso à docência no ensino público. Incomodava-o ficar a lecionar no colégio da família; ambicionava a advocacia, embora o seu fraternal companheiro Salgado Zenha, este jurista qualificado, ironizasse dizendo que Mário era um homem de causas (políticas) mas confuso nos meandros judiciais. Fosse como fosse, licenciou-se em Direito sem nunca chumbar como aluno voluntário, ou seja sem a obrigatoriedade de comparência nas aulas. Sabia Soares que eu travara, enquanto membro do Governo de Marcello Caetano e cúmplice de Melo e Castro na promoção da ala liberal, vigorosa defesa em favor do seu urgente regresso de São Tomé para onde fora deportado por iniciativa pessoal de Salazar. Todavia, o que rapidamente nos reaproximou foi sobretudo a comum vontade de servir o país, também a alegria de viver. Como foi agradável dar-me depois com Mário Soares durante anos, mais do que interlocutores ficamos verdadeiros amigos. Ele socialista democrático convicto, eu não menos defensor dos parâmetros sociais.

Fui pressionado por Soares para integrar a Comissão Política do primeiro MASP em 1980. Aceitei a honra durante um almoço era ele ainda primeiro-ministro, orgulhoso de ter contribuído para a adesão de Portugal às Comunidades Europeias, responsável também, com o apoio de Ernâni Lopes e Almeida Santos, pelo saneamento das Finanças, embora sob a descabida acusação da esquerda radical de que para tanto metera o socialismo na gaveta. Serviu-nos de elo de ligação o comum amigo Gomes Mota, que fora designado presidente da TAP, sem prejuízo de manter uma publicação mensal de caráter económico, onde o substituíra como diretor a par de outras tarefas profissionais menos divertidas, mas mais lucrativas. Longe estávamos os três de antever a dificuldade da campanha, em que se chegou a estar abaixo dos 8% enfrentando a concorrência de Zenha respaldado pelo general Eanes, de Freitas do Amaral beneficiando da capacidade organizativa de Proença de Carvalho, finalmente da minha anterior colaboradora no Ministério da tutela laboral, a inesquecível Lurdes Pintassilgo, generoso expoente de agitação cívica, na linha do que hoje pretende ser o Bloco de Esquerda, embora no caso daquela com os evangelhos como livro de cabeceira.

Resultou uma campanha estafante iniciada pela recusa sintomática de Azeredo Perdigão e depois Nobre da Costa para mandatários. Veemente a oposição de Eanes, a hostilidade da CDU, a euforia da Direita em torno de Freitas, vestindo roupa de qualidade como se fosse farda a que não faltava o ridículo de uns unissexuais chapelinhos estilo tirolês, que exibiam por todo o país. Passou-se à segunda volta por um triz, ganhou-se finalmente por uma unha negra com Soares hesitante, até ao último momento, sobre qual dos discursos, que tinha no bolso, fosse o da vitória ou o da justificação. Pessoalmente, acumulei a inicial coordenação das comissões temáticas com a direção da campanha no determinante distrito de Lisboa, quando tudo parecia agreste. Fui sincero ao responder ao candidato, quando numa noite me agradecia o empenho: A vitória será sua, mas a derrota de todos nós. Trabalhávamos em cumplicidade total. Concretamente, na AIP eu ficaria sem regresso enfrentando igualmente mau ambiente em empresas. No PS houve escandalosos retraimentos. Escondo nomes de amigos, descuro a preocupação de repor a verdade. Mas, diverte o oportunismo de soaristas após a vitória, como de indigna o topete do desrespeito perante a preocupação cimeira do líder de manter a fronteira bem demarcada entre o socialismo democrático e as opções totalitárias. 

Veio depois o brilhante mandato de pacificação política, desinibindo o país, designadamente através das presidências abertas, tornando-o menos redutor, até com laivos de cosmopolitismo no seio da comunidade europeia, sem prejuízo de simultaneamente se honrar a perspetiva pluricontinental da nossa História. Em 1986, não era configurável que Soares não fosse reeleito. Candidatou-se com expresso apoio do PS e do PSD. Insistiu embora em manter integralmente a composição da Comissão Política anterior. Demarcou-se assim de uma possível alteração de imagem. Definiu-se publicamente como Democrata, Republicano e Laico. Inicialmente preferira o termo agnóstico a esta última qualificação. Fez bem em alterar, porque se pode ser laico sem deixar de religioso. Com isso ganhou votos abrindo aliás uma saudável tendência para o economismo onde participou. Algo terei tido de ver com isso. Concordei sem reticências em reassumir as anteriores responsabilidades na campanha, embora a minha atividade empresarial já fosse muito superior. Pareceu-me a tarefa fácil na nova conjuntura. Garantiram-me a colaboração de três outros independentes, mais socialistas do que de alguns credenciados militantes, secretária eficiente, automóvel com motorista, gabinete cómodo no palacete do largo do Saldanha, de novo sede da campanha.
Mas, duas semanas depois da tomada de posse já as ilusões estavam ardidas. Cavaco, eficiente, controlador e leal, assegurava a nível nacional a participação correta do PSD, mas descendo à realidade regional e local, verificavam-se rivalidades, contenciosos, grandes e pequenas birras entre rivais de antes no combate político. Houve cenas de trágico-comédia. Gomes Mota, sempre de acordo com Soares, teve de recorrer ao protagonismo de Homem de Melo como diretor do jornal de campanha denominado Belém, no seu perfil palaciano de autointitulado conde, agnóstico aparentemente maçom, cortesão vocacional com contactos no seio da alta burguesia. A mim tocou-me a rua por esse país fora. Tive de interromper praticamente a atividade empresarial, servindo amiúde de rainha santa entre opositores dificilmente apaziguáveis. Nesse contexto, Mário Soares foi exemplar de paciência, se necessário de humildade. Nunca conheci político que o soubesse fazer melhor. Contudo, teve sempre o vento a favor. 
Num intimista encontro a dois, fixámo-nos na previsão de 75%, porque à direita seria possível travar em 15% a candidatura inexplicável de Basílio Horta, que eu sempre considerara político do Centro, mas aparecia impante como reacionário. Na esquerda deparava-se uma amalgama de vozes incongruentes em favor ou contra a CDU, apontando para os 10%. No dia do resultado final, entre a gritaria dos apoiantes, que bloquearam o largo do Saldanha e artérias limítrofes, Soares e eu lastimávamo-nos, contra o parecer de Gomes Mota, por se tivesse ficado nos 72%, designadamente devido a Manuel Alegre haver falhado ao não travado devidamente o eleitorado de esquerda, ao que ainda hoje creio ter-se ficado a dever ao anti-soarismo de Ferro Rodrigues e pessoas quejandas, a fazer-se já ouvir a voz de Paulo Pedroso. 

Concluindo: Mário Soares, político de enorme mérito teve tudo favorável para a reeleição. Prometeu a continuidade da harmonia política generalizada, ao que veio a faltar como fruto do seu perfil de animal político de grande porte, não tanto de homem de Estado. Transbordava de vitalidade, era de uma inconsistência temática própria do intuitivo. Despediu-se da política, ao perfazer oitenta anos, numa concorridíssima sessão de consagração interpartidária, para pouco depois se recandidatar pela terceira vez à chefia do Estado, já Gomes Mota falecera, Homem de Melo e eu recusando-nos a acompanhá-lo. 

Iniciou-se a partir daí o declínio, que a História será benigna em menosprezar. Chegámos a zangarmo-nos, após as incríveis declarações por ele proferidas contra a Justiça, à saída do estabelecimento prisional onde Sócrates fora parar. Felizmente para minha tranquilidade anímica, reconciliamo-nos sem rebuço aquando do falecimento de sua mulher de quem eu me tornara sincero amigo. Grande Senhora, cuja memória é frequentemente evocada em minha casa como modelo de solidariedade cristã. No meu longo percurso político, Marcello Caetano representou o rigor da escola, Soares a aventura. Falemos seguidamente de Marcelo Rebelo de Sousa e sua triunfal vitória para a continuidade em Belém.

Continua…