Por Sofia Aureliano
Como investigadora e fascinada pela arte de fazer politica vejo-me muitas vezes em encruzilhadas de inquietação entre o fascínio pela estratégia e pelas manobras, e a visão segura, objetiva e justa que a mãe, mulher e cidadã gostava por que se regesse a sociedade.
O Eu racional contra o Eu emocional. Uma luta inglória que, nem sempre (mas demasiadas vezes) causa desconforto e obriga a algumas catarses.
As palavras servem-me (ou finjo que sim) como exorcismos. Talvez sirvam a mais inquietos. Mas, que fique claro, não posso dizer que me mova qualquer propósito altruísta.
O que hoje me inquieta?
1. O medo da habituação à anormalidade e o vírus da indiferença. Em março, cada número de vítima mortal ou novo caso de infetado por covid-19 mexia connosco. Com todos, invariavelmente. Até com os que, hoje, se intitulam de "os negacionistas". Fazia-nos tremer o desconhecido, o contexto de limitação de direitos que, no meu caso, eram dados como adquiridos, a impossibilidade de planear a vida sequer a curto prazo. Tremíamos com um ou dois dígitos, como hoje não trememos com três ou quatro.
Habituamo-nos à rotina sombria de ver números onde já não vemos pessoas, a não ser que a tragédia nos bata à porta ou aconteça no nosso limitado perímetro da permitida deslocação.
2. A escalada do grito, quando toda a sociedade berra e os sobreviventes do soundbyte têm de se fazer ouvir. Estão viciados e precisam da dose diária de mediatismo. Já tomaram como certa a máxima "falem bem, falem mal, falem de mim", porque perceberam que resulta sempre. Abre telejornais, faz manchetes, inflama as redes sociais e condiciona a agenda dos comentadores do dia.
Mas cada vez têm de se esforçar mais para chamar a atenção no meio do ruído. Pelo tom, já não chega, porque há gente a gritar bem alto e com timbres mais agudos. E há os residentes que, mesmo quando não falam, o silêncio é ouvido. E ensurdece.
Aos novos agarrados, aspirantes a senadores reativos, resta-lhes pular exaustivamente no trampolim na tentativa de serem vistos e de conseguirem impressionar pelo conteúdo. O que não é difícil, considerando que somos inatamente atraídos pelo sangue, como prova o abrandamento mecânico que fazemos ao passar por carros acidentados, com o objetivo de ver o mais possível com o máximo pormenor.
Por uma dose de 24 horas de destaque na bolha social ou mediática, esses saltadores de trampolim sabem que têm de descer mais um degrau, chocar mais um bocadinho, ser mais pequeninos. Haverá um limite. Mas, de resto, já achávamos que havia um muro de decência inultrapassável que há muito foi derrubado.
É um problema crescente sem fim à vista porque, como nos hospitais, também a bolha não aumentou no espaço "físico", mas são cada vez mais os doentes que querem lá entrar.
3. Os rebanhos. Quando a tática é óbvia e a avistamos à distância e, mesmo assim, somos incapazes de contrariar a nossa natureza e fazer o que seria preciso para eliminar aquilo com que não concordamos. E seguimos, qual marionetas ou ratos hipnotizados por um qualquer flautista de Hamelin moderno.
Nada mais alimenta o lobo do que falar dele: é dar-lhe carninha tenra todos os dias. Sabemos disto. Mas alimentamos.
Nada é mais fácil (e cobarde) do que bater em quem todos batem.
Culpar o sistema, o governo, as instituições, os políticos, os boys ou a justiça, que têm a sociedade manietada e nos tramam a todos, todos os dias.
Sabemos que não é assim. Mas alinharmos.
Não é tudo farinha do mesmo saco. Mas para se distinguir o trigo do joio é preciso sujar as mãos. Dá trabalho e leva tempo. Tempo que é precioso para continuar a chafurdar onde vale a pena. Onde rende mais likes, comentários e partilhas.
É mais confortável ser consensual e seguir o pastor. Mas também é mais irresponsável e potencialmente perigoso.
Eu, também ovelha, às vezes, me confesso.