A grande esperança para tratar casos graves de covid-19 pode ter surgido das margens do rio Nilo, registada há quase quatro mil anos, num pergaminho descoberto por saqueadores de tumbas. Pode, porque os efeitos da colchicina, uma substância anti-inflamatória, usada em casos de gota e artrite, ainda não estão provados – os ensaios clínicos da Colcorona, envolvendo mais de quatro mil pacientes com covid-19, mostraram uma diminuição de 50% na necessidade de ventilação e de 44% na mortalidade, mas os resultados ainda estão por rever – e porque os egiptólogos nem sequer têm a certeza que os antigos egípcios usassem colchicina.
Alguns, com quem o Nascer do SOL falou, asseguram que não há menção ao uso de crocus – o género de planta de onde se extraí colchicina – no papiro Ebers, o mais completo registo da farmacologia do Antigo Egito; outros garantem que sim. É que traduzir hieróglifos não é fácil, salienta Lisa Sabbathy, professora da Universidade Americana do Cairo, especializada em saúde e doença no Antigo Egito. «A única maneira de descobrir o que algo significa em egípcio antigo é colecionar todas as frases em que a palavra aparece e perceber o contexto. Às vezes é uma suposição», explica. «Por exemplo, se escrever em inglês coltsfoot [Tussilago farfara], poderiam pensar que me referia a um casco de potro», concorda a professora Salima Ikram, colega de Sabbathy, especializada em Bioarqueologia, o estudo de esqueletos à procura de indícios quanto ao estilo de vida, alimentação e cuidados de saúde dos antigos egípcios. Contudo, ninguém duvida que o estudo da medicina desta civilização milenar, que espantou gregos e romanos, possa dar pistas quanto ao futuro da nossa medicina, inspirando ensaios clínicos, talvez até curas para doenças de hoje.
«Devia-se montar um laboratório, juntar químicos e experimentar estas coisas, observar e perceber o que poderiam funcionar. Sei que há substâncias que foram testadas, mas muitas não», considera Sabbathy. «É interessante quantos remédios populares são precursores do que usamos hoje, daquilo que produzimos quimicamente», acrescenta Ikram. «A aspirina aparece na história como casca de salgueiro, eles conheciam-na», exemplifica. «Há potencial real na archeaofarmacologia. Claro que um problema é que continuamos a destruir o nosso planeta, e o número de espécies está a diminuir. No Egito, também por causa do aquecimento global, muitas das plantas que floresciam aqui, e provavelmente faziam parte da farmacopeia quotidiana dos antigos egípcios, já não existem».
Fé, magia e medicina ancestral
O fascínio pela medicina do Antigo Egito está longe de ser uma particularidade moderna, vestígio do febre faraónica da era vitorians, no rescaldo da invasão do Egito por Napoleão. Aliás, nos tempos clássicos, a Odisseia, de Homero, já referia que cada egípcio «é um médico com conhecimento para lá de todos os homens», uma admiração partilhada por historiadores como Heródoto ou Diodoro Sículo. Quando gregos queriam aprender medicina, era à famosa biblioteca de Alexandria que iam, para beber dos conhecimentos dos tempos dos faraós, misturando-os com novos métodos e práticas.
«O Egito, nos seus tempos glória, era uma civilização muito avançada, comparativamente às outras», lembra Roger Forshaw, professor na Universidade de Manchester, dedicado à medicina do Antigo Egito. «Eram uma sociedade agrícola, que beneficiava do dom do Nilo, era rica e com excedentes, permitindo especialização», que alguns tivessem o suficiente para dedicar a sua vida a ler, escrever e acumular conhecimento médico. Dado não haver moeda, eram pagos em bens, como pão ou cerveja, uma vez que os egípcios praticamente não bebiam água – suspeita-se que deitassem dejetos no Nilo, tornando-o intragável. Alguns médicos até se davam ao luxo de receitar medicamentos com substâncias vindas de bem longe, numa espécie de comércio farmacêutico embrionário, nota Salima Ikram. «Sabemos que eles importavam muito incenso, alguns óleos, plantas especiais ou produtos animais que usavam na medicina, que recebiam de regiões como a Núbia».
Milénios mais tarde, Paul Ghalioungui, um dos tradutores do papiro Ebers, no séc. XX, diria que os antigos egípcios «foram os primeiros na história a olhar para o outro lado do abismo que separa magia da ciência». Não que fosse uma separação clara, para eles «o conhecimento empírico, baseado em observação, e ações mágicas, eram partes igualmente válidas, eles não distinguiam», nota o professor. «Mas será que nós somos assim tão diferentes? Hoje vais ao médico, resolver um problema que tenhas, e, se fores uma pessoa religiosa, no caminho de regresso rezas, seja a que Deus for. Nesse sentido, há semelhanças».
Uma diferença crucial era quem praticava medicina. Podiam ser escribas, sim, mas provavelmente seriam sacerdotes de Sekhmet, a deusa da medicina, conhecidos especialistas em tratar olhos e ânus – «eles deviam sofrer de diarreias terríveis», explica Sabbathy. «Quer dizer, não tinham refrigeração e as coisas deviam estar sempre cheias de poeira, de certeza que comiam muita comida estragadas».
Ainda assim, se víssemos uma farmacopeia do Antigo Egito, talvez não fosse muito diferente da nossa ervanária de bairro. «Haveria frasquinhos com todo o género de plantas, algumas das quais ainda são usadas», aponta Sabbathy. «Mas poderia ser diferente por haver mais cerveja, bem como partes de animais esmagadas, muitos insetos», enumera. «Há uma prescrição para fazer um bebé parar de chorar que leva ópio – o que provavelmente funcionaria muito bem», refere, com uma gargalhada, «misturado com excrementos de mosca que apanhas na parede de casa. Para que diabo serviria?»
Não é o único medicamento que hoje em dia nos deixaria de cabelos em pé. «Um contracetivo que temos falado no meu seminário – não estamos certos que contracetivo seja palavra certa, ou se é uma maneira da mulher perder o bebé – são os excrementos de crocodilo», refere Sabbathy, com um ar decididamente enojado. «Alguns académicos até brincam que, quando o marido descobria o que a mulher metia dentro dela, simplesmente ia-se embora e passava a noite com os rapazes».
«Uma hipótese é que os excrementos de crocodilo são esponjosos, por isso seriam um bloqueio. Mas como é que alguém se lembra de algo assim? Algumas coisas são bizarras», garante. «Outros egiptólogos lembram que o crocodilo é o animal do deus Set, que tentou que Isis perdesse o seu filho, Hórus, quando estava grávida, para que ele não pudesse ser rei. E que o uso excremento de crocodilo não é seria coisa física, mas sim uma crença religiosa, que eles pensavam que ajudaria a destruir uma criança. Quem sabe?»
É um dilema comum para quem estuda a medicina egípcia, onde amuletos e encantamentos são colocados lado a lado com mezinhas e medicamentos, que talvez tenham um princípio ativo. Pensa-se que algumas destas ideias – umas mais racionais, outras menos – sobreviveram até à atualidade, embutidas na medicina popular europeia e do Médio Oriente, trazidas por gregos e romanos.
«Eles tinham muitas receitas médicas com menções a atar carne fresca nos olhos ou em cortes», exemplifica Sabbathy. «Como faziam antigamente os lutadores de boxe, que punham carne crua no olho. Hoje em dia, qualquer médico lhe dirá para nunca fazer isso, que a carne tem bactérias, que os cortes vão ficar infetados. Mas há muitos paralelos engraçados».
Basta pensar na maneira com falamos dos sentimentos como vindos do coração – afinal, não sabemos hoje que a emoção é um fenómeno do cérebro? Contudo, os antigos egípcios tinham a certeza que pensar era tarefa do coração. E essa ideia «de alguma forma sobrevivem no pensamento moderno», refere Forshaw.
Os egípcios valorizavam tanto o coração que compreendiam bastantemente bem o seu funcionamento do sistema circulatório. No papiro Ebers, onde alguns egiptólogos dizem mencionar-se a colchicina, já se mencionava que era o coração que bombeava sangue para todos os pontos do corpo – muito antes de William Harvey redescobrir o fenómeno, no século XVII.
Contudo, mais uma vez, o olhar empírico misturava-se com o espiritual. «Eles também tinham a ideia de que o corpo estava cheio de canais, não era só o sangue a circular, havia água, urina, excrementos, um pouco de tudo. Explicavam os tumores, que sentiam debaixo da pele, como algo levado para o sítio errado», ressalva Sabbathy. Ou seja, não se tratava apenas de observar que jorrava líquido quando perfuravam o corpo – para os egípcios o corpo era como o próprio Egito, dependente do fluir do Nilo, num mundo onde o próprio deus do sol, Amon-Rá, transportava o astro-rei numa barca, através de canais do submundo.
No entanto, em algumas coisas os médicos egípcios acertaram na muche. Em particular com um dos seus ingredientes favoritos, o mel. «Cerca de 15% das prescrições médicas deles eram mel. E isso é muito inteligente, porque tudo no mel é antibiótico, o mel nunca se estraga, não te pode dar uma infeção se o meteres numa ferida. Eles perceberam isso, deve ter sido uma coisa muito boa. E ainda é uma coisa muito boa», salienta a professora. «A sua avó dir-lhe-á o mesmo».
«Sim, na medicina do antigo Egito há coisas que soam muito bizarras, como receitas que envolvem atar um rato ao pescoço. Mas, no outro dia, estava a ler sobre crenças populares inglesas, e notei que eles também falam de pegar em ratos e atá-los à volta da garganta de alguém que sofra de tosse convulsa», nota Salima Ikram. «Este tipo de crença era partilhado por muitas culturas, separadas no espaço e no tempo. Quer tenham sido passadas de povo em povo, ou surgido independentemente – o que indicaria até que podem ter algum sentido que não compreendemos, por mais louco que nos pareça.
«Quem sabe? A ideia de nos infetarmos para nos mantermos saudáveis, que é o que fazemos com as vacinas, seria uma ideia louca para os antigos. Provavelmente diriam: ‘estás a tentar matar-me', e fugiam», refere a professora, rindo. «Ou a ideia de um medicamento à base de pão bolorento», acrescenta. «Mas, de facto, os egípcios têm uma receita que requer pão bolorento. À primeira vista, soa a conhecimento de algo como a penicilina, no fundo das crenças deles. Eles sabiam que as coisas funcionavam, não sabiam porquê. Mas chegava»