Por força da pandemia, muitas foram as alterações ocorridas na sociedade a vários níveis, umas causadoras de danos e prejuízos irreparáveis, outras que se ficaram apenas por modificações pontuais nas nossas rotinas, podendo mesmo, quando tudo passar, darem lugar à normalidade que se perdeu. A crise económica tem sido devastadora e, no campo da saúde, o ‘terramoto’, para além das vítimas que causou, tirou tudo do seu lugar e nada está como dantes. Isto vem a propósito do episódio que hoje venho partilhar, passado há poucos meses atrás.
Apesar de pertencer à Medicina Familiar, foi pedida a minha colaboração nas Juntas Médicas de Avaliação de Incapacidade no âmbito da Saúde Pública, suspensas desde que começou a pandemia, devido ao facto de os profissionais dessa área terem sido destacados para outras funções. O trabalho foi-se acumulando e, para concluir os inúmeros processos pendentes, os clínicos da minha especialidade têm dado a sua colaboração.
Aceitei assim interromper o meu trabalho no centro onde estou colocado para integrar uma junta médica noutro local, desempenhando uma tarefa até então desconhecida para mim. Ao lado do experiente Guilherme Mucha, médico de Saúde Pública e presidente, e da dedicada Sara Santos, médica de Medicina Familiar a quem foi solicitada idêntica colaboração, passei a fazer parte desse órgão colegial, avaliando os doentes numa outra perspetiva, consoante o caso clínico que nos é apresentado para análise e deliberação. Muitas situações tenho acompanhado, por vezes dramas de difícil resolução e problemas delicados exigindo bom senso, dentro do enquadramento legal que é necessário seguir, numa rotina semanal onde a administrativa Alexandra tem sido excelente colaboradora.
Num desses dias estava agendada uma mulher perto dos cinquenta anos, portadora de doença oncológica em fase avançada, espalhada já por vários órgãos, inclusive na pele. Solicitava, como qualquer um, o seu atestado de incapacidade para obtenção dos benefícios a que tinha direito. Quando esperávamos uma doente revoltada, triste ou deprimida face à sua situação clínica, deparámo-nos com uma pessoa alegre, comunicativa, simpática, que, embora consciente do seu problema, fazia questão de afirmar que tinha tido «muita sorte».
Ao ouvir tão assombroso comentário, ficámos sem palavras e ninguém tinha coragem para a interrogar. Até que, a muito custo, o presidente lá conseguiu perguntar: «Sorte?». E a resposta foi quase imediata: «Sim, senhor doutor, já viu a sorte que tive? Quantas pessoas nas minhas condições estavam destruídas psicologicamente ou internadas num hospital, e eu ainda com possibilidades de estar aqui a falar consigo e a poder fazer a minha vida? Não podemos desistir. Temos de ver a vida de outra maneira. Um dia de cada vez. Amanhã será o que Deus quiser. É assim que falo diariamente com o meu marido e os meus filhos».
Olhámos uns para os outros em silêncio, sabendo de antemão que, perante a legislação, ela teria direito à incapacidade máxima. Então, falando em nome de todos, Guilherme Mucha concluiu, tentando esconder alguma emoção: «Tem direito ao máximo que é possível atribuir num caso destes». Mas a doente, ainda com sentido de humor, surpreendeu-nos de novo e acrescentou: «Não me diga! Agora é que o meu marido vai dizer que tem uma grande deficiente lá em casa…».
Nunca mais soubemos nada desta senhora, mas não há semana alguma em que não falemos dela e da lição de vida que naquele dia nos deu. Que testemunho o seu! Uma questão me ocorre colocar: quem terá afinal razão? Seremos nós, que nos queixamos por tudo e por nada quando a vida nos corre mal, por problemas sem importância nenhuma, ou esta admirável senhora que, apesar de gravemente doente, e com o destino traçado, ainda se considerava uma pessoa com sorte?
Ponhamos ali os olhos e meditemos no exemplo que nos deixou, em especial os maus utilizadores dos serviços de saúde que, por mais que se lhes faça, estão sempre descontentes, desconfiados e a criticar sistematicamente quem cuida da sua saúde e zela pelo seu bem-estar. Ao invés, a experiência diz-nos que os doentes com doenças mais graves são os que menos se queixam e que, regra geral, mais se conformam com a ‘sorte’ que os atingiu. Este caso é bem a prova disso.
São exemplos como este que nos obrigam a pôr a mão na consciência e a pensar como queremos viver a vida e qual o significado que ela tem para cada um de nós. E dispenso-me de fazer mais comentários, procurando, à luz deste episódio, fazer silêncio; o mesmo silêncio em que nós, os membros da junta, caímos quando, naquele dia, a doente se retirou.
Uma história? Muito mais do que isso. Uma autêntica lição de vida!