por Sofia Aureliano
1. As histórias boas não são boas histórias. Ninguém quer saber delas, a não ser que estejam estrategicamente bem contadas e, pelo meio, nos deem alguns murros no estômago e nos deixem inquietações. Para isso, têm de ser, em algum momento pesadas, sombrias, dolorosas. É essa a arte do storytelling e o guião base não foge muito ao arquétipo do herói improvável (o outsider, o alegadamente mais fraco, o representante das minorias, o contracorrente) que supera uma dificuldade inesperada, contra todas as probabilidades ou, melhor do que isso, contra um muito mais forte vilão. Até pode ter final feliz, mas tem de haver contratempos. Porque a normalidade não é sexy. O comum não protagoniza boas histórias.
O dilema moderno não é arranjar atores, porque há muitos em casting todos os dias. O problema é quem é escolhermos como herói e quem queremos que seja vilão. E engana-se quem pensa que o storytelling serve só os emergentes. Serve os espertos.
Imaginem o título "Costa vs. Pandemia": Quem é o herói?
2. Espantamo-nos com a caça à fraude pontual na vacinação, ao erro que, aqui e ali, vai sendo encontrado e que, não sendo minimamente representativo do todo, tem mais destaque do que ele.
Ingenuidade nossa, que ao fim de tanto tempo, ainda não sabemos as regras do jogo. Ou hipocrisia, porque tantas vezes usamos esses truques para nos sustentar o argumento. Não fazemos ou já fizemos todos o mesmo? Quem não usou já os exemplos da Maria, do António ou do José? Todos usaram. Porque é assim que se faz. Porque é assim que as Rosas, as Lurdes e os Carlos vão dar atenção ao que se diz.
Não nos finjamos por isso agora tão chocados quando a gota mancha o oceano.
3. A justiça vs. a moral. Nesta altura, a minha mãe estará a dizer "não te metas por caminhos apertados". Provavelmente, com razão, como sempre. Mas é uma inquietação, e este é o espaço do exorcismo. Vamos a ela.
Sabemos que são meia dúzia os "casinhos" de chico-espertos que, tendo esse acesso, fizeram o que outras meias-dúzias, em podendo, gostavam de ter feito. Muitos dos que agora apontam o dedo, de peito feito, aparentemente repleto de moral e de princípios, estão cheios de frustração por não ter conseguido chegar primeiro. O argumento do "safam-se sempre os mesmos" traduz isso mesmo.
Não os move sentido de justiça nem de solidariedade em relação a outros que devem ser os primeiros. Mas antes o melindre de estar de fora da lista dos que conseguem ter acesso. Se os movesse a moral e não o despeito, o argumento seria outro.
Mas a inquietação não é essa.
Quem levou a vacina indevidamente, e com consciência disso, agiu de forma imoral. Se será punido ou não, é cedo para saber. Mas, antes disso, será premiado com a segunda dose, porque seria imoral não o fazer. Palavra de Francisco Ramos.
Pode ser uma certeza para muita gente, mas ainda não é para mim. Não encontro justiça no ato de imunizar quem prevaricou. Não é um tema fechado mas, para já, o meu sentido de moralidade ainda não os “imuniza”. Estou sozinha nesta encruzilhada?
4. A dúvida faz de mim o quê? Humana. Não acomodo teses messiânicas de que os que querem – ou equacionam – punir os imorais tenham todos o mesmo rótulo ideológico. Sou a prova de que essa associação não passa de um devaneio bacoco, totalmente deslocado e displicente. Não sei se o meio milhão de eleitores do Chega se questiona sobre a moralidade e a justiça de premiar os infratores. Tenho, contudo, a certeza de que pelo menos uma manifesta não eleitora desse partido o faz. Cai por terra a evidência do que de evidente já nada tinha.
Temo que, mais uma vez, se estejam a desviar as atenções da discussão que importa, a mais difícil e mais profunda, para alimentar a espuma dos dias. Como é conveniente que se faça. Passar ao de leve, agitar quanto baste, marcar a ordem do dia e seguir caminho. Aquilo que em bom português se chama de “atirar areia para os olhos”.
Pelo menos, desta vez, sacrificaram o cordeiro certo.
Mas nada garante, para já, que não haja mais ovelhas tresmalhadas e que não continuemos limbo.
5. Negacionistas do negacionismo. Se acho simplório, desnecessário e até terceiro-mundista o périplo de desfiles que o executivo faz todos os dias, a cada primeira vacina de um novo elemento de um grupo prioritário, de um residente de um novo lar de idosos, de um profissional de saúde de uma nova unidade hospitalar, de um elemento da comunidade prisional, sempre seguido pelo aglomerado de jornalistas, fico perplexa com a discrição escolhida para a vacinação dos membros do governo. E ainda mais com a justificação dada pela opção: não há necessidade de divulgar porque as pessoas já “estão ganhas para a vacina”, não questionam a vacinação. Não?
Têm aliás todas as razões para confiar no processo, tal tem sido a transparência.
É por isso que já nem se fala em movimentos negacionistas.
Em junho, é mais do que certo que, havendo vacinas, estaremos centenas em fila, o tempo que for preciso, faça chuva ou faça sol, à espera da nossa vez para ser vacinados, quais groupies excitados à entrada para o concerto de regresso dos U2 a Portugal.