Numa loja na China, com os mais sofisticados produtos, centenas de pessoas deambulam e fazem as suas compras. Desde 2017 que este conceito existe. Não há um funcionário, não há um segurança, não há terminais de pagamento. Graças ao reconhecimento facial todas as pessoas estão identificadas, ao saíram da loja os produtos ficam automaticamente registados e é feito o débito direto na conta bancária dos clientes. Se levar algum produto e não tiver crédito ficará registado o seu débito para com a loja e implica a respetiva sanção pelo não pagamento, ocorrência praticamente desconhecida, pois a entrada implica ser possuidor de um código digital. O Estado e empresas têm acesso a toda a informação sobre os cidadãos. Somos principalmente, já não só consumidores, mas bases de dados
O novo mundo é já o presente. Podemos ficar indiferentes, espantados, maravilhados ou assustados. Há uma desconfiança crescente em relação à China como sociedade tecnológica e são-lhe atribuídas tendências de controlo e vigilância que não seriam as ‘nossas’. A culpa é sempre do Outro, cabe agora aos chineses. Ora, o problema não é chinês. A revolução tecnológica, os avanços na robótica, na informática como até na genética transformarão radicalmente a nossa vida, seremos outros, talvez, pós-humanos. Nas próximas décadas o papel da inteligência artificial e da fusão entre máquinas e humanos colocará as nossas sociedades em outros patamares.
A tecnologia é um instrumento, depende do uso. A grande revolução tecnológica e industrial tem um aspeto pouco considerado. O que mudou o Ocidente, não foi o capitalismo, nem o liberalismo, estes existem há séculos, em muitos aspetos à milhares de anos. O que transformou totalmente o nosso modo de estar e organizar a nossa vida, foi a tecnologia. As ideologias a partir do século XIX são apenas simples capítulos da revolução industrial e tecnológica. As grandes lições de sabedoria estão dadas, existem há milhares de anos, aplicam-se também às máquinas, o problema é que não sabemos usar essas lições, e provavelmente já nem as conhecemos ou sequer entendemos. É verdade que podemos fazer quase tudo, mas nem tudo deve ser possível. As questões éticas têm cada vez menos sentido, há sim, questões técnicas e jurídicas.
Uma das principais ilusões das crenças liberais, é que melhoramos como humanos, que nos aperfeiçoamos, e que a máquinas mais perfeitas corresponderá uma humanidade mais racional e mais humana. Os nazis usaram a tecnologia para potenciar o seu delírio, os comunistas devem o êxito provisório da sua cruel revolução à tecnologia, o mundo hiperliberal progressista é também a expressão de um modo de usar a tecnologia e os desenvolvimentos destas. Aliás, na grande revolução dos costumes, a ideia de que tudo é uma construção social, pode bem ser possibilitado pela tecnologia. A biologia e a genética passam a depender dos nossos caprichos. A civilização das máquinas não melhorou o homem, não nos tornamos mais humanos.
A culpa não é das máquinas, nem tão pouco dos chineses. Somos bons a construir utensílios, até ao utensílio derradeiro, o que nos tornará obsoletos, até lá, continuamos os mesmos animais curiosos e frenéticos. Sempre existiram transformações, mas decorriam de um modo em que a sua assimilação implicava uma adequação, estamos agora num outro nível, o que implica uma destruturação irreversível do que somos.