Por Maria Margarida Teixeira, médica da linha da frente
29/01/2021 – 23h00. No hospital desde as 08h00. A correr. Agora, sento-me. Faço uma pausa para inspirar. Na trincheira. Mantenho a vida. É o meu lema. Não esquecer que sou médica-soldado. Combato. E, não me importo de combater até ao fim. Mas, os muitos dias de carência e, mais ultimamente, a inexistência de um comando supremo, têm sido, profundamente dilacerantes, para a sanidade daqueles a operar no teatro de guerra. Com a frente para guarnecer pergunto, ao vento que passa, notícias do meu país. E o vento traz-me a desgraça. Morte a pedido no meu país. Nesta noite escura, em que centenas de portugueses esperam nas ambulâncias por socorro, esta decisão afetou-nos profundamente. Portugal encontra-se numa confusão total. Um lado combate a morte com coragem, o outro não, o que torna este combate, cada vez mais desigual.
Numa época de calamidade a indiferença do legislador português à morte dos seus, próprios, compatriotas revela a tendência nacional para a intransigência. Uma vez que a Assembleia da República, a dirigir a batalha de longe, transmite uma imagem de indiferença quem quer saber de explicações? Por mais minuciosas que sejam, são incompreensíveis e derrotistas. Se, alguma vez os deputados tivessem praticado a eutanásia teriam sido bem mais cautelosos pois, saberiam que a administração da morte a outro ser humano é um ato de extrema violência. É preciso pensar, naqueles que vão ficar depois de dar a morte. Um soldado quando mata nunca mais esquece e nunca mais é a mesma pessoa. Mortifica-se para toda a vida. Quanto mais um médico! No day after irá recordar, pensará, vezes sem conta, se terá procedido bem. E, a médio longo prazo pagará um alto preço físico, psicológico e humano pelas mortes programadas que executou. Por isso, naquela madrugada instalou-se na trincheira e em mim mesma a possibilidade, séria, de sermos derrotados por esta Lei.
Atravessamos momentos muito difíceis mas o pior está para vir quando a supressão de vidas começar a ser imposta aos médicos portugueses. Nessa altura, ousarei dizer ao doente o quanto esse pedido me agride e destrói. Imediatamente serei acusada de roubar ao doente a liberdade de escolher o momento da sua morte. Então, olhos nos olhos, perguntarei ao doente, e porventura à sua família, se pensam que o doente tem todos os direitos, inclusive o de me violentar como médica obrigando-me a mata-lo? Replicará o doente que pelo facto de ter uma doença fatal, ou por estar velho, ou por estar dependente tem o direito especial de pedir a morte. Mas, não tem o direito de exigir de mim um ato que me destruirá para sempre, retorquirei. Com esta resposta o doente passará a culpar-me do seu sofrimento. Vai chorar, vai insultar-me vai dizer mal dos cuidados de saúde. E, não vai desistir de exercer o seu poder sobre mim. A Lei está do seu lado. Passarei de médica a agressora. O facto de me ver como ‘não alinhada’ vai-lhe dar uma força, paradoxal, para continuar a exercer pressão sobre mim.
Porquê esta violência de forças entre o doente eu: médica-soldado? Porque, o que está em causa, nesta discussão, não sou eu pessoa, mas sim o poder que me é atribuído por ser médica. O poder da vida e da morte. Como eu não quero utilizar esse poder exaspero aqueles que mo querem arrebatar. E não o quero utilizar porque sei que tocaria em algo que fulminaria para sempre a minha pessoa Então, vai virar as costas ao doente? perguntam os defensores da eutanásia. Nunca. Acredito na ética da medicina Holística que permite aos doentes estarem mais acompanhados e serem melhor tratados.
De novo com o doente para escutar. Acolho as suas palavras. Compreendo como se sente agredido pela doença e pela vida. Em relação à medicina, o sentimento de abandono é enorme. Com os seus a solidão é dilacerante. Ninguém tolera, mais, a sua companhia. Sente-se à margem, ‘Tudo é muito violento’ dir-me-á. Mas, a sua maior mágoa é a sua situação ser tão violenta e ninguém se interessar…
Quando a violência que o doente suporta é asfixiada pelo sistema, o doente reenvia-a aos médicos, às enfermeiras e á família. Torna-se agressor porque ele próprio se sente violentamente agredido pela doença e pela vida. Ao pedir eutanásia, ele não está a pedir para ser morto o que ele pretende, desesperadamente, é um contacto humano. Alguém que se aproxime. Alguém que lhe mostre ter um lugar para ele no coração. Ao estabelecer com o doente um pacto de não abandono o médico consegue abortar o pedido de eutanásia. Por isso, pedir a eutanásia não é querer a eutanásia. A partir de agora vai ser preciso muita prudência, muita cautela para impedir a instrumentalização de doentes portugueses para pedirem a eutanásia. Espera-nos um combate exigente. Aos médicos e às equipas vai exigir-se proximidade, escuta, presença. Sou desde 29-01-2021 uma médica fora da Lei. Pronta para derrotar a eutanásia com a vitória da medicina Holística. A única capaz de ser luz nas profundezas do Tarrafal de cada ser Humano em sofrimento.