Por Isaltino Morais
Presidente da Câmara Municipal de Oeiras
Em julho de 2020, na oportunidade de rever as dificuldades e melhorarem o oxigénio de que se alimenta qualquer regime democrático, a participação e o envolvimento dos cidadãos, o Partido Socialista e o Partido Social Democrata decidiram promover alterações à Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais (LEOAL), dificultando as candidaturas dos movimentos independentes a estas.
Os autarcas eleitos em movimentos independentes foram protestando, sem que muita gente estivesse disposta a ouvir.
Muito decorrente do facto de o presidente da Câmara Municipal do Porto ter conseguido colocar a questão na agenda mediática, honra lhe seja feita – a que se seguiu um coro de comentadores com alguma réstia de liberdade e dignidade nesta democracia de ‘cobardes’ e de ‘cartel partidário’ (como tão bem qualifica José Miguel Júdice o estado atual do regime) –, de um pedido de fiscalização abstrata da constitucionalidade da parte do novo diploma pela Provedora de Justiça (de clareza jurídica e de princípios de Estado de direito democrático, cristalinos), parece haver consenso na necessidade de alterar a lei.
O pedido de inconstitucionalidade da lei pela senhora Provedora assenta, exatamente, no cerne dos protestos dos autarcas independentes. Com as alterações introduzidas, a lei passa a impedir que o mesmo grupo de cidadãos concorra a todas as autarquias do concelho: município e assembleias de freguesia.
Fruto da evolução do mal-estar público provocado por esta legislação, António Costa e Rui Rio já afirmaram, candidamente, por mensageiro ou diretamente na televisão, que não conheciam estes problemas. Isto é, o primeiro-ministro e o líder da oposição aprovaram, sem conhecer, uma lei que cria entraves à participação dos cidadãos na vida pública – notável. A democracia parece seguir então dentro de momentos, pois ambos se mostraram disponíveis para alterar a lei.
Acontece, porém, que, no passado dia 23 de fevereiro, no Público, um anteriormente anónimo deputado do Partido Social Democrata decidiu assumir, sem nunca o dizer, a paternidade da criança, anteriormente bastarda. Presume-se que apenas um pai ofendido pela horrenda cria que gerou poderia sentir o impulso de vir defendê-la publicamente.
Num artigo que destila fel em relação aos movimentos de cidadãos, que parece querer controlar (raras vezes um deputado tão novo me pareceu tão bolorento em relação à liberdade de escolha dos cidadãos e em relação a Rui Moreira), o anteriormente anónimo deputado Hugo Carneiro tenta demonstrar que a nova lei estava a eliminar as fraudes ao eleitorado. Segundo Hugo Carneiro, um movimento de cidadãos que concorre à câmara e assembleia municipais não pode enganar os cidadãos dizendo que é o mesmo que concorre às assembleias de freguesia.
Quando refere que «a fundamentação [da Provedora de Justiça] aparenta não compreender o que é um Grupo de Cidadãos Eleitores à luz da revisão constitucional de 1997, o que se lamenta [e que] o Parlamento continua, porém, a ser autónomo em relação às iniciativas da Provedora», o noviço deputado alcança lamentáveis laivos pedantes de constitucionalista que roçam a má-educação e a falta de respeito institucional em relação à Provedora de Justiça – curiosamente, ela sim, que já foi juiz e vice-presidente do Tribunal Constitucional e que, na sua carreira, é exatamente catedrática de… Direito Constitucional. Não é o melhor curriculum para um neófito, cada macaco no seu galho!
Veja-se o ridículo do que defende o até agora anónimo deputado: entre os 308 concelhos portugueses há um que não tem freguesias (o Corvo) e seis com apenas uma freguesia (Alpiarça, Barrancos, Castanheira de Pera, São Brás de Alportel, Porto Santo e São João da Madeira). Isto é, foi feita uma lei para sete concelhos e contra os 301 restantes.
No caso de Barcelos, por exemplo, com as suas 61 freguesias, um movimento de cidadãos poderia concorrer à câmara municipal, assembleia municipal e uma assembleia de freguesia (presumivelmente, a da sede do concelho), deixando de fora, pasme-se, 60 das 61 freguesias existentes. Ridículo e absurdo.
Estas alterações procuram separar o território do município do território das freguesias, como se os mesmos não estivessem profundamente intricados, nas políticas e na estratégia de futuro, e a separação fosse realizada pelos órgãos, e não pelo território. Por alguma razão os presidentes das uniões e juntas de freguesia têm assento na assembleia municipal, o que, por si só, nega o argumento da nova lei.
Na realidade, olhando pragmaticamente para a lei e para as suas intenções, o que a mesma verdadeiramente tenta, através de um estratagema pelintra, é retirar as maiorias nas assembleias municipais aos movimentos de cidadãos ou, no caso concreto, no município do Porto, retirar a maioria ao destinatário do ódio do anteriormente anónimo deputado: retirar, na Assembleia Municipal, a maioria a Rui Moreira.
Ora, isto é ganhar na secretaria o que se perde nas eleições, atirando pela janela o que o eleitor dá pela porta. A lei parece visar um presidente de câmara, curiosamente a do concelho do anteriormente anónimo deputado. Se isso prejudica a participação dos cidadãos ou a governabilidade dos municípios, isso será outro problema que parece não criar qualquer celeuma: vai o bebé (a democracia) com a água do banho.
Também não colhe o argumento da confusão dos proponentes das assembleias de freguesia. A lei, na sua versão anterior, também não permitia que quem residisse na freguesia A assinasse a propositura de candidatos à freguesia B. Isso nunca foi questão. Nos grupos de cidadãos, isso nunca foi uma realidade. Provavelmente, o anteriormente anónimo deputado estará a confundir-se com as questões que trata nas eleições internas do seu partido; estará talvez a julgar os outros pela sua própria bitola, infetado pelo vírus do mau provincianismo.
Importa dizer que escreve estas linhas quem gosta (muito) de Rui Rio e concorda em absoluto com a sua estratégia de centrar o Partido Social Democrata. Acredito mesmo, ao contrário de muitos outros, que ele tem condições para chegar a primeiro-ministro. Todavia, importa avisá-lo que não será com estes conselheiros que atingirá os seus fins.
A história está cheia de exemplos de como o chefe é usado pelos conselheiros nas suas cruzadas pessoais, vindo a morrer pelo fogo amigo.
Convém referir que as dificuldades criadas aos grupos de cidadãos não são de hoje. A aritmética injusta no número de assinaturas necessárias, a questão do IVA ou a falta da clareza da legislação, que coloca nas mãos do bom senso do magistrado local, arbitrariamente, a decisão sobre a aprovação ou não de um movimento. Recorde-se o que aconteceu nas eleições autárquicas de 2017, nas quais um juiz decidiu introduzir um critério de análise das candidaturas independentes, que apenas aquele magistrado e uma candidatura liderada pelo seu padrinho de casamento acompanhavam.
Quando os líderes ou os porta-vozes partidários tentam desviar as atenções para questões laterais, importa sempre dizer que não são estas as questões que estão em discussão. Sabemos que o número de assinaturas deve ser elevado, pois um grupo de cidadãos eleitores deve demonstrar efetiva adesão da população. O problema é a lei pretender impedir que o mesmo grupo de cidadãos concorra a todos os órgãos autárquicos do mesmo concelho: câmara, assembleia municipal e assembleias de freguesia.
Num tempo de ascensão dos extremos e de captura do discurso político pelos mesmos, convinha ler história, como tem avisado José Miguel Júdice, que recordou, superiormente, que a República de Weimar, um regime progressista de homens bons, caiu pela cobardia desses mesmos homens e foi sucedido pela monstruosidade nazi.
Os movimentos de cidadãos estão a ser empurrados para o extremo da constituição de um partido de base municipalista. Não o querem fazer, mas poderão ter de o fazer: o ‘cartel partidário’ está a promovê-lo.
O afastamento dos partidos moderados do centro político, onde está a maioria dos cidadãos é, cada vez mais, uma evidência.
As democracias não morrem de morte súbita, morrem em gerúndio, vão morrendo. Cabe ao primeiro-ministro, António Costa, e ao líder da oposição, Rui Rio, dizer se querem ficar na história como coveiros da democracia portuguesa.