por Elsa Severino
Arquiteta paisagista
1295-1726. A poucos quilómetros de Lisboa, na margem direita do rio Tejo, nasce o ‘Porto do Restello’ numa enseada protegida dos ventos. Barcos e homens daqui partem à conquista de Ceuta, e Vasco da Gama aqui inicia a viagem de descoberta do Caminho Marítimo para a Índia. Em 1500, Pedro Álvares Cabral solta amarras e parte à descoberta do Brasil. Em consequência, o Rei D. Manuel (1495-1521), com o conforto da ‘vintena da Índia’, manda erguer a ‘Igreja para o Mosteiro da Ordem de S. Jerónimo’, hoje Mosteiro dos Jerónimos. Segue-se a construção da Torre de Belém – e o sítio de Belém consolida-se, propício à fixação de várias famílias ‘titulares’ portuguesas. O Marquês de Marialva constrói o seu palácio (onde séculos mais tarde surgirá o Centro Cultural de Belém), e em 1726 D. João V compra o palácio dos condes de Aveiras, transformando-o no Palácio Real de Belém (que será a Presidência da República).
Jardins Botânicos. Além da construção de monumentos e palácios, surgem dois importantes jardins botânicos: o Jardim Botânico da Ajuda, em 1868, e o Jardim Botânico Tropical (também conhecido por Jardim Colonial e Jardim do Ultramar). Ambos apresentam espécies tropicais e subtropicais oriundas de vários continentes, corolário da diáspora portuguesa. Retratam todo um trabalho de recolha, transporte, aclimatação e estudo de inúmeras espécies exóticas que foram sendo introduzidas na nossa paisagem, e toda uma investigação paralela que muito contribuiu para o desenvolvimento da agricultura em Portugal Continental, Insular e Ultramarino.
O Palácio dos Condes da Calheta, ao cimo deste último jardim, contém um espólio único que inclui «as reservas técnicas das coleções coloniais resultantes das missões científicas aos trópicos». Este passado não pode apagar-se da nossa História.
1940. Não por acaso, mas em consequência da relação simbólica com o Tejo e com o sítio monumental de Belém, nasce na antiga barra do Restelo, em frente ao Mosteiro dos Jerónimos, a Exposição do Mundo Português, sob a direção e planificação de Cottinelli Telmo.
Apesar da grandeza do evento, quase todos os edifícios, de construção precária, foram demolidos, mantendo-se a Praça do Império, com a sua fonte luminosa, ‘átrio de honra’ da Exposição.
Este conjunto foi executado e financiado à época pelo Município de Lisboa, excetuando o conjunto hidráulico (bombas e repuxos), oferta de Hitler a Salazar. Esta origem alemã também deverá levar à sua substituição? Não o creio, a não ser que esteja tecnologicamente ultrapassado.
2021. A tutela municipal sobre a Praça do Império mantém-se, sendo da sua responsabilidade o lançamento de um concurso de ideias (2016) para a sua requalificação.
A polémica instalou-se quando veio a público a intenção de suprimir os brasões florais, desenhados em 1961 no âmbito da Exposição Nacional de Floricultura e da comemoração do quinto centenário da morte do Infante D. Henrique. Não sendo da época da Exposição do Mundo Português, assumem no entanto a linguagem do conjunto: são 30 brasões florais representando os 18 distritos portugueses, Portugal Insular e Ultramarino; a Cruz de Cristo e a de Avis estão igualmente desenhadas nos canteiros envolventes à fonte, além de um escudo nacional.
Este conjunto em mosaico-cultura é invulgar pela realidade histórica que transmite – como que um mapa vegetal – mas também pela raridade nos jardins portugueses. O facto de terem sobrevivido sessenta anos confere-lhes um valor histórico/cultural que não deve ser desprezado e muito menos apagado.
A Fonte Luminosa do jardim tem igualmente um friso exterior de brasões do império, estes esculpidos em baixo-relevo, na grandiosa taça circular em pedra. Estes estão em bom estado de conservação (pois a fonte foi recuperada em 2004), e são considerados por alguns como os ‘verdadeiros’, logo a manter, sendo que os vegetais, adulterados por falta de manutenção e ausência de plantas adequadas, podem e devem desaparecer.
Estou em total desacordo com esta forma maniqueísta de classificação de brasões entre ‘verdadeiros’ e ‘falsos’. Sabemos que as formas vegetais não são perenes, exigindo saber e dedicação continuada, além de algum investimento financeiro; quando tudo isto esmorece, o realismo do desenho morre rapidamente e a sua mensagem passa a ser o oposto do pretendido. Deduzimos que não há jardineiros à altura e que os meios financeiros escasseiam – e os símbolos representados passam a ser de má memória.
Mas estes canteiros ornamentais não são menos importantes do que os brasões esculpidos na pedra; nós é que os tratamos com total falta de rigor botânico e sem rotinas de jardinagem.
Importa referir que a mosaico-cultura desapareceu quase por completo dos cânones da arquitetura paisagista contemporânea, mas há um público fiel a estas composições – e arrisco dizer que a maioria dos jardins históricos pelo mundo fora mantém as composições em mosaico-cultura, ou os parterres, seja qual for a mensagem retratada ou os encargos daí resultantes.
Porque surge toda esta polémica em torno de 33 canteiros em mosaico-cultura? Não creio que a preocupação resida na exigência de qualidade dos jardins de Lisboa; e não partilho a opinião de se pretender apagar símbolos do nosso passado, embora a demolição do Padrão dos Descobrimentos já tenha sido aventada por um deputado do PS, sem que a ministra da Cultura se tenha pronunciado sobre o assunto.
Refira-se que esta onda de rejeição de símbolos do passado não é nova. Já em 1790 varreu a cidade de Lisboa e, segundo o Dicionário da História de Lisboa, «foi retirado um cruzeiro existente em frente da porta lateral do Mosteiro dos Jerónimos, assente na praia como padrão comemorativo da partida de Vasco da Gama (em 1497)».
A questão fulcral que me interessa analisar, enquanto arquiteta paisagista, é tão-somente o estado de abandono dos brasões vegetais, que há muito deixaram de representar a técnica da mosaico-cultura, e muito menos as províncias ultramarinas ou o que quer que seja.
A Câmara de Lisboa, responsável pelo jardim, tinha e tem como obrigação manter esta técnica de jardinagem, cujos antecedentes remontam à Idade Média e à Renascença. A mosaico-cultura é uma composição vegetal bastante simplificada relativamente aos complexos ‘parterres’, ainda assim exige muito conhecimento botânico e plantas de elevada qualidade, pois a cor utilizada, a folhagem, além da floração, são a matéria (vegetal) para transmitir uma mensagem. Grandes mestres da arquitetura paisagista contemporânea, como o brasileiro Burle Marx (1909-1994), utilizaram esta técnica para criar composições únicas, reconhecidas como património cultural.
Convém ainda referir que certas opções camarárias no passado recente tiveram consequências nefastas para os jardins. A extinção do corpo de jardineiros de excecional qualidade, e da Escola Municipal que os formava, desvalorizou as práticas de jardinagem, a boa manutenção dos espaços verdes e arvoredo, e a fiscalização com ‘conhecimento de causa’ das empresas privadas que atuam no espaço público. Acresce a isto a transferência da responsabilidade da maioria dos espaços verdes para as Juntas de Freguesia, o que provocou uma ‘indiferença’ perante a matéria vegetal, com uma multiplicidade de práticas de jardinagem, ou a ausência delas, no tratamento dos jardins de Lisboa.
Isto é importante nos tempos que correm? Com certeza que é – pois a pandemia veio demonstrar a nossa dependência da natureza. As cidades irão refletir esta crise sanitária num pós-pandemia, e os espaços verdes, o espaço público, a mobilidade suave, serão a grande mudança do futuro próximo. O sinal tem de ser dado de imediato, nem que seja na perfeita manutenção de singelos canteiros em mosaico-cultura, existentes nos jardins do Estado Novo, ou em quaisquer outros, representativos da nossa recente democracia.
Nota: Os brasões vão ser preservados, refere a imprensa… talvez em calçada! Ora, a Escola Municipal de calceteiros também foi extinta! As pedras não são flores. O Milagre das Rosas não se repete!