Querida avó,
Sabes que o Ruy de Carvalho completa esta semana 94 anos.
Tenho que admitir a minha mais pura perplexidade! 94 anos? O Ruy não tem idade, é intemporal!
Tenho pelo Ruy (e pela família), uma gratidão imensa, por uma vida inteira dedicada à arte, aos palcos, à representação.
Cresci a ver o Ruy na televisão. Recordo-me de o ver na novela Vila Faia, ou na série Gente Fina é Outra Coisa, devia eu ter uns 10 anos.
Acima de tudo, admiro o Ruy por ter tempo para os outros, por abraçar tantas causas sociais, por tudo o que faz, faz de corpo inteiro. O Ruy tem uma lucidez invejável. É impressionante ouvi-lo a recitar o texto do Monólogo do Vaqueiro, que fez há …64 anos, como se o tivesse representado o ano passado.
Quem ama a vida como o Ruy, é amado por ela. Quem ama os outros como ele ama, é por eles amado. A vida retribui aquilo que lhe damos.
A vida do Ruy não tem sido fácil! Mas ele é resiliente, e tem o dom de lutar contra as adversidades que vão surgindo.
Eu vou aceitar que o Cartão de Cidadão do Ruy tenha gravado 94 anos. Mas a idade metabólica dele é bastante inferior.
Quando for possível, lá iremos percorrer Portugal. O Ruy com a peça A Ratoeira, eu com uma exposição retrospetiva de uma percentagem mínima daquilo que tem sido a sua vida.
Tenho o privilégio de estar com o Ruy várias vezes. Fico deslumbrado quando andamos na rua, e o Ruy tem tempo, e vontade, de falar com todos o que o abordam, (e são tantos).
Já aconteceu, mais do que uma vez, estarmos no meio da multidão que se aglomera à volta de Ruy. De repente, ouve-se o vozeirão do Ruy dizer: «Deixem passar o meu neto»! E todos se desviam para deixar passar o neto, inclusive eu. Inevitavelmente, acabo por cometer sempre o mesmo erro…
E nisto, ouve-se novamente a voz do Ruy, desta vez com os olhos postos em mim: «Então, não vens?».
Avô Ruy, feliz aniversário. Que privilégio considerar-me como neto.
Querido neto,
O nosso Ruy de Carvalho completa 94 anos? Conheço o Ruy desde miúda («é minha amiga de infância», diz ele sempre que nos vemos), do tempo em que ele aparecia num pequeno café que então havia ao cimo da Av. Fontes Pereira de Melo, em Lisboa (há muito soterrado com todos os Centros Comerciais que lhe caíram em cima…), onde também paravam outros atores, e o meu tio Joaquim, que era um apaixonado por teatro e adorava ficar a ouvi-los. E eu ia com ele. E, pela sua mão, nunca faltei às estreias do Nacional, do Monumental, do Avenida, do Parque Mayer.
Lembro-me de ver o Ruy ao lado da Laura Alves, do Paulo Renato, do Villaret, da Madalena Sotto, sei lá de quem mais. E quando o encontrava na Paulistana lá lhe dizia: «gostei muito». «Nunca me mintas», respondia ele. Mas era verdade. Eu gostava sempre muito.
E depois eu cresci, e assisti, com o meu primeiro namorado, àquela extraordinária aventura que foi o Teatro Moderno de Lisboa. E lá estava o Ruy. Ao lado da Carmen Dolores, do Armando Cortez, do Fernando Gusmão, do Rogério Paulo, etc.
E depois o cinema, e depois a televisão.
E agora, tantos anos depois, quando eu pensava que o Ruy tinha decidido parar um bocadinho… é vê-lo com uma energia imparável, seja na televisão ou no teatro.
Há pessoas assim. E é um gosto vê-las assim!
Um homem, aos 94 anos, a imaginar-se capaz de fazer uma digressão com a peça a A Ratoeira, para qualquer ponto de Portugal, como quem vai de Lisboa a Cascais…
E de repente lembro-me da Carmen Dolores. Nada melhor para rematar esta crónica do que recordá-la. No esplendor dos seus 96 anos, a exclamar numa entrevista que ouvi na rádio:
«Oh meu Deus, as coisas que eu fazia se tivesse 80 anos!».
Volto a dizer: há pessoas assim. E que bom que é tê-las na nossa vida.
O Ruy anda sempre num corrupio que só mesmo a sua juventude é capaz de aguentar.