por José Sócrates
Com muita paciência para com quem foi mudando de opinião ao longo dos governos a que pertenceu, reentro, mais uma vez, no debate do aeroporto. Se insistem no silêncio sobre o passado, insistamos nos factos. Facto um: o aeroporto de Alcochete foi escolhido depois de uma avaliação ambiental estratégica. Aquilo que o Governo diz agora que vai fazer estava feito desde 2008. Facto dois: o aeroporto de Alcochete tem estudo ambiental realizado e avaliação ambiental aprovada desde 2010. Facto três: o aeroporto de Alcochete tem o anteprojeto de construção aprovado. Facto quatro: o aeroporto de Alcochete tem o parecer positivo de todas as câmaras envolvidas. Facto cinco: o aeroporto de Alcochete pode ser construído por fases, sendo que na primeira fase poderia funcionar como complementar ao da Portela com uma pista e infraestruturas de terra e ar muito semelhantes às projetadas para o Montijo e com custos de investimento análogos. Estes são os factos. Agora, a conclusão: foi um irresponsabilidade não ter avançado com a solução que estava estudada e aprovada. Dez anos depois, de volta à casa de partida.
Quero também argumentar contra a tentativa de diminuir as razões das câmaras municipais recalcitrantes, menorizando o legítimo interesse local que representam e levantando contra elas o que pomposamente chamam de superior interesse nacional. Este aspeto da questão – interesse local versus interesse nacional – merece discussão mais aprofundada que farei adiante. No entretanto, e para que haja clareza e justiça neste debate, é preciso dizer de entrada que o principal problema do projeto Montijo é que ele não nasce de nenhum ‘superior interesse nacional’, mas de um interesse empresarial. A chamada opção Montijo não é um projeto do país, mas de uma empresa. Esse projeto não foi proposto por nenhum órgão da administração pública, não foi estudado por nenhum laboratório público de investigação, não foi comparado com nenhuma outra solução possível. Ele resultou simplesmente da escolha da empresa Vinci. Na verdade, o que estão a querer impor não é o interesse público legitimo e desinteressado, mas o interesse de uma empresa. Este ponto, este ponto em particular, é particularmente chocante. E as câmaras sabem-no.
Vejamos agora a questão do veto das câmaras municipais ou seja, a questão do interesse nacional em contraponto ao interesse local. A honesta mediania do comentário político resolveu transformar o argumento em ‘questão de bom senso’. Bom senso. Grande parte do poder de atração deste argumento reside no convite a abandonar qualquer esforço de reflexão. Mas vejamos em concreto o seu fundamento que parece desenvolver-se assim: em decisões nacionais e importantes, como é o caso da construção de um novo aeroporto nacional, o interesse local não se pode sobrepor ao interesse nacional. Parece simples e, no entanto, é mais complicado do que parece. Com o devido respeito, gostaria de lembrar que a lei em vigor não impõe que o interesse local se imponha ao nacional, mas pretende evitar exatamente o oposto – que o interesse nacional desconsidere absolutamente o interesse local. É talvez conveniente lembrar que os países não constroem aeroportos de ano a ano, nem de dez em dez anos, mas talvez de cem em cem anos. E, nesse caso, justamente por ser uma decisão que afetará o território durante uma vida inteira, não me parece nada desajustado que uma lei imponha como condição de escolha que ela possa compatibilizar os dois interesses – o nacional e o local. A lei que está em vigor assentou em dois pressupostos. O primeiro é que, no caso da construção de um novo aeroporto cujo horizonte de projeto é de muitas décadas, nenhum interesse se deve sobrepor ao outro – nem o local ao nacional nem o nacional ao local. A solução deveria ser obtida por consenso e por negociação. O segundo pressuposto é que esse objetivo não seria difícil de obter. E a verdade é que a lei não se enganou. Alcochete é a prova que esse acordo é possível. Não vejo, portanto, razão nenhuma para impor aquilo que dizem ser o interesse nacional, havendo a possibilidade de o fazer com a aquiescência de todos os interessados. Para devolver o argumento, isso é que não me parece ser de bom senso.
O primeiro erro foi não ter construído Alcochete, o segundo foi considerar Montijo com a oposição expressa das câmaras municipais. Dizem agora que os dois maiores partidos vão alterar a lei no parlamento. Outro erro e, desta vez, mais grave já que coloca em causa a lealdade do processo de decisão. Antes, quando se definiu o método de deliberação, o Estado comprometeu-se a decidir com base num acordo e numa negociação. No início de tudo as regras foram estabelecidas quando ninguém sabia o que iria acontecer (debaixo de um véu de ignorância quanto ao futuro, para quem se importa ainda com teorias de justiça). Agora que o resultado não foi o que se esperava, o Governo decide alterá-las. Como esperam que alguém possa aceitar esta decisão como justa? Como esperam fazer aceitar uma deliberação sobre o qual recaem sérias duvidas de que corresponda ao interesse nacional, mas sim a um interesse empresarial? Como esperam que alguém considere legítima uma decisão que resulta de regras alteradas a meio do jogo? Não, não estão a corrigir o erro. Estão a ampliá-lo.