Um tiro de bazuca no pé

Estamos a completar 60 anos da execução do Plano Marshall, que se chamou Plano de Recuperação da Europa.

Por Filipe Anacoreta Correia

1. Estamos a completar 60 anos da execução do Plano Marshall, que se chamou Plano de Recuperação da Europa.

2. Tratou-se de uma ajuda dos EUA para permitir a reconstrução europeia no pós-guerra, assente essencialmente numa visão de paz e desenvolvimento.

3. No seu discurso de apresentação, em junho de 1947, o secretario de Estado americano anunciou que pretendia ajudar os europeus a ajudarem-se a si próprios: «A política dos Estados Unidos não é dirigida contra um país ou uma ideologia, mas contra a fome, a pobreza, o desespero e o caos».

4. O Plano Marshall foi um sucesso e representou um importante instrumento para o período mais longo de paz na história da Europa. Não foi por acaso que o seu promotor, George Marshall, recebeu o Prémio Nobel da Paz, em 1953.

5. A Europa e o mundo enfrentam hoje uma das crises mais graves dos últimos 100 anos: a pandemia está a ter consequências devastadoras sobre o tecido social e económico apenas comparáveis à destruição provocada por uma guerra.

6. Foi com este enquadramento que a União Europeia criou um Mecanismo de Recuperação e Resiliência europeu no valor de € 672 mil milhões de euros – valor mais de 6 vezes superior do que o plano do pós-guerra.

7. Este Mecanismo terá de ser ratificado pelos 27 parlamentos nacionais em que a regra da unanimidade faz depender a sua implementação de uma aceitação unânime.

8. Se for aprovado, Portugal terá acesso a cerca de 16,7 mil milhões de euros (cerca de 14 mil milhões em subvenções e 2,7 mil milhões em empréstimos), atribuídos durante os próximos 5 anos.

9. Ainda que o termo bazuca seja manifestamente desadequado a propósito – só em 2020 o PIB português perdeu 11 mil milhões de euros – não há dúvida que pode ser determinante para mitigar os efeitos devastadores da pandemia.

10. No entanto, o dinheiro não é só por si garantia disso mesmo. Para que um plano desta dimensão tenha resultados é preciso critério e sobretudo um foco.

11. Há duas maneiras de encarar estes apoios: como uma esmola assistencialista ou como um incentivo para nos ajudarmos.

12. No primeiro caso, o dinheiro é recebido e aplicado onde queremos ou precisamos sem uma preocupação de verdadeiro investimento na perspetiva de reforço da capacidade produtiva.

13. De acordo com o documento apresentado pelo Governo português, Portugal tem «bloqueios estruturais»: «défice de competitividade»; «défice de qualificações dos portugueses»; e «desigualdades sociais e territoriais».

14. Sucede que o Plano não dá resposta estrutural a nenhum destes problemas e na verdade segue uma receita que não serve: 70% a 80% dos fundos são dirigidos para o investimento público, sem um qualquer foco de preocupação com as vítimas da catástrofe pandémica ou com o reforço da capacidade económica. 

15. O que é específico desta crise é que a capacidade produtiva está fortemente ameaçada, mas não destruída. E, ignorando isto, o plano segue uma linha enunciada previamente à crise, retoma políticas antes gizadas, algumas generosas, outras erradas, todas totalmente desencontradas com a situação que o país e os portugueses estão a enfrentar.

16. É nestas alturas que nos lembramos daquilo que tantas vezes ouvimos: quando um socialista atira dinheiro para cima dos problemas, o dinheiro desaparece e os problemas agudizam-se. Foi assim no passado e voltará a ser se nada aprendermos para fazer diferente.

17. O Plano tinha de ser muito mais privado e menos dirigista, tinha de ser muito mais assente na realidade e no potencial económico nacional, tinha de ser de reconstrução e não de miragem.

18. Numa matéria desta importância não pode haver precipitação e, por isso, fez bem o CDS em fazer um apelo ao Governo para que prolongue o debate nacional, mediante uma verdadeira auscultação dos parceiros sociais e pugnando para que o Plano seja sujeito a debate e aprovação na Assembleia da República. 

19. Os líderes nacionais e europeus têm de perceber hoje que em momentos de catástrofe tem de haver apelo à coesão e à partilha de responsabilidades, o que só se alcança com visões suprapartidárias.

20. Com o crescimento, à esquerda e à direita, de extremismos e com o aprofundar de sinais de conflituosidade social, ideológica e nacionalista só uma resposta cabal às necessidades das pessoas será tranquilizadora.

21. Se assim não for, o tiro que vier a ser dado, será mais uma vez uma oportunidade perdida. Um tiro no pé dos portugueses que, a seu tempo, poderá ser também uma ameaça à paz.