por Sofia Aureliano
Este é um tema recorrente e causa recorrente inquietação. Assume agora contornos dignos de país de terceiro mundo.
1. Pala ideológica. Apesar de a DGS ter definido – e bem – a necessidade da testagem em massa de toda a comunidade escolar, o governo, qual burro com pala ideológica, entendeu que isso significava testar apenas o universo dos “estabelecimentos de ensino públicos e em respostas sociais de apoio à infância do setor social e solidário”. Fica de fora, mais uma vez, toda a comunidade escolar do ensino privado e cooperativo. Esta decisão, em linha com outras tomadas em tempos não pandémicos, como a gratuitidade dos manuais escolares ou o Programa Nacional de Promoção da Saúde Oral, denuncia um preconceito ilegítimo e uma dedução infundada sobre o nível de rendimentos dos agregados familiares que escolhem colocar os seus filhos no ensino privado. Como se todos conhecessem as circunstâncias em que cada escolha é feita ou as consequências que cada agregado, decorrente delas, suporta.
Desta vez, a teia alastra-se ainda mais e discrimina também os profissionais da comunidade escolar particular e cooperativa que, pelo local de trabalho onde exercem as suas funções, não têm o mesmo direito que os seus pares a serem testados.
2. Desequilíbrios na balança. Quando qualquer medida separa o universo do ensino público do ensino privado, discriminando sempre o segundo, a pergunta que faço é sempre a mesma: para onde vão os meus impostos? Deduz-se que se o meu filho frequenta o ensino privado é porque eu posso pagar. Ignoram-se quaisquer consequências dessa decisão e os motivos que a suportam. Não peço a ninguém que analise os meus rendimentos e obrigações para concluir que posso suportar as minhas escolhas. E estou igualmente consciente de que há quem não tenha essa opção. Mas devo ficar num calvário de convicções porque posso escolher e outros não? Se devo, não fico.
Não vou ser politicamente correta e dizer que sim. Prefiro aguentar as balas ao peso da hipocrisia. Os juízos de valor passaram a ser como o pão para a boa fome: obrigatórios e de consumo diário. E os rótulos são armas de arremesso que utilizamos para aliviar a tensão do mundo que carregamos às costas. Ambos toldam-nos a razão, mas deixam-nos previsíveis.
Sigo o caminho inverso. O de questionar porque é que não tenho direito a querer que o meu filho beneficie das mesmas medidas de política pública que todas as crianças que estão no seu nível de ensino usufruem? Não é este o governo de todos? Porque este é o governo que cobra a todos. E é do erário público que vão sair quase 20 milhões de euros para pagar os testes à comunidade escolar… do ensino público.
Quando vejo o recibo de vencimento sinto-me sempre injustiçada, enganada, burlada, como se fosse ao supermercado, chegasse à caixa, pagasse um cesto cheio de compras e trouxesse apenas meia dúzia de artigos no saco.
3. O vírus não anda só no público. O problema das palas ideológicas é que cegam paulatinamente os seus pregadores. Ao fim de um tempo, depois de se repetir sempre a mesma ideia, acaba-se por não se conseguir aceitar outra opinião como possível ou verdadeira. Tal não seria extremamente grave, se não estivesse em causa o bem comum.
Mas ao fazer esta discriminação, pondo em causa o princípio da igualdade, o governo está também a comprometer a saúde pública. De que serve testar em massa, se da massa fica logo de fora um universo de tantos milhares de pessoas?
Fica bem no discurso político, mas no terreno é uma falácia. Na realidade, não se está a garantir a eficácia de controlar a propagação do vírus, alegadamente o objetivo máximo desta medida.
O vírus, por seu lado, parece ser mais democrático do que o governo: não discrimina entre público e privado, cooperativo e social. Chega a todos e espalha-se indiscriminadamente.
Se a testagem massiva é uma medida para desconfinar em segurança, está a pensar o governo reabrir só as escolas do ensino público?
4. Foco. Existem temas acessórios que, não excluindo a relevância de serem debatidos, não foram propositadamente aqui explanados. Estariam a desviar a essência e o propósito desta crónica. É o caso da reflexão sobre se as crianças devem ou não ser testadas e a partir de que idade, ou de como se irá tratar a questão dos menores cujos pais não autorizem, ou mesmo dos adultos que se recusem a ser testados. Também não é o foco aqui se as escolas privadas podem ou não, como as empresas, suportar o custo dos testes rápidos. Na verdade, também conseguiam suportar a continuidade imediata do ensino online em janeiro, sem interrupção letiva, e foram obrigadas, pela tutela, a parar imediatamente, "para não criar desigualdades".
A questão que abordo é exclusivamente dos domínios do princípio da igualdade e da salvaguarda da saúde pública. Podemos ziguezaguear pelos outros temas noutra altura.