Enzo Ferrari, provavelmente o maior construtor de automóveis de todos os tempos, dizia que a corridas das Mille Miglia, ou das Mil Milhas, em português, era para garibaldinos, expressão que aplicava para caracterizar pilotos de sangue na guelra e vontade indómita de vencer a despeito dos obstáculos que lhes surgissem pela frente. Ah! E se havia prova mais bela que a das Mille Miglia! A corrida dos fidalgos. Criada no ano de 1927, por despeito, depois de o Grande Prémio de Itália ter sido transferido de Bréscia para Monza. Bréscia era uma cidade de cavalheiros e de moços que gostavam de exibir um velha opulência herdada do tempo dos avós, mesmo que muito deles metessem as mãos nos bolsos e de lá só tirassem bolas de cotão. Ainda assim, havia a questão do estatuto, do prestígio. E não se aceitava calado aquilo que era uma afronta.
Os italianos são especialistas em mães e em carros. «Mamma mia, che brutta machina!», e por aí fora. Dois deles, ambos condes, frequentadores profissionais de cocktails de fim de tarde, de porte elegante e cabelos esticados e negros à custa de quilos de brilhantina, Francesco Mazzotti e Aymo Maggi, não ficaram de braços cruzados ao assistir à forma como a sua Bréscia natal era amputada de um dos grandes momentos anuais que era, indiscutivelmente, o Grande Prémio de Itália. Não iriam suportar o silêncio que substituiria o roncar excitante dos motores nem a ausência sempre esperada com enorme expectativa de nomes como Alberto Ascari, Tazio Nuvolari, Pietro Bordino ou Giuseppe Campari, gente que recebiam como príncipes no circuito de Montichiari, composto por uma mistura de pista com estradas regionais.
Claro que, entretanto, os dirigentes do automobilismo italiano andavam metidos em sarilhos com o excesso de acidentes que ocorria nas provas por si organizadas, alguns deles ceifando a vida de espetadores histéricos que se amontoavam na beira da pista e das estradas para tentarem ver de perto os seus heróis. Monza parecia um local bem mais seguro, embora não tenham conseguidos evitar tragédias terríveis como, por exemplo, a de 1928, quando Emilio Materazzi entrou a 300 km por hora por entre a multidão fulminando uma trintena de infelizes.
Pela estrada fora
Mazzotti e Maggi lá tinham os seus ademanes de nobreza mas não nadavam propriamente em dinheiro. Foram, portanto, em busca de investimento junto de Renzo Castagneto, um organizador de provas automobilísticas, e este, por sua vez, garantiu o apoio de alguns dos maiores industriais da zona. Ficou estabelecido que a prova ligaria Brescia a Roma (ida e volta) o que correspondia, mais polegada menos polegada, às mil milhas com que foi batizada. A edição de estreia contou com 77 pilotos, todos italianos. A dupla de vencedores, Ferdinando Minoia e Guiseppe Morandi, conduzindo um OM 665 S, um carro fabricado pela Società Anonima Officine Meccaniche, nos arredores de Milão, foi amplamente festejada. A popularidade das Mille Miglia foi imediata. Basicamente fazia sombra ao Grande Prémio de Itália. E tinha mais glamour. E uma curiosidade muito sua: os participantes largavam a casa de partida de minuto a minuto, com os carros mais lentos e fracos a saírem primeiro e eram numerados pela hora do arranque: por exemplo, Stirling Moss, em 1955, ganhou o número 722 por ter largado às 7h22. De um dia para o outro, as grandes marcas, da Mercedes à Alfa (Anonima Lombarda Fabrica Automobille), da BMW à Maserati, com a Ferrari à cabeça, queriam ganhar a maratona de quilómetros por estradas nacionais e regionais que iam de Bréscia, a teimosa capital do automóvel italiano, a Roma, capital por direito da Itália por inteiro.
Um dos mais persistentes pilotos que surgiu a disputar as Mille Miglia foi Tazio Nuvolari. Sobretudo depois de ter assistido às duas vitórias consecutivas do seu grande rival Giuseppe Campari em 1928 e 1929, ao volante de um Alfa Romeo 6 C 1500 Super. Nuvolari conseguiu a tão desejada vitória em 1930, também conduzindo um Alfa, mas não demorou a assinar um contrato para correr pela Ferrari. Enzo, o seu patrão, tinha por ele uma consideração infinita. «Era um homem espontâneo e cáustico que poucos amigos puderam conhecer no íntimo», escreveu Ferrari na sua autobiografia. «Ao contrário de todos os outros pilotos, nunca se queixou da inferioridade do carro, nunca partiu vencido, sempre lutou de forma leonina, fosse pela sétima ou pela décima posição. Esta sua paixão, este seu orgulho indomável, foram compreendidos pela multidão. E daí nasceu o mito!»
Famoso pela forma como dominava o carro nas curvas, fazendo-o entrar em derrapagem às quatro rodas, aproveitando a aceleração gerada pela força centrífuga e mantendo-o na pista com a força de tração das quatro rodas motrizes, Tazio Giorgio Nuvolari, nascido em Castel d’Ario no dia 16 de novembro de 1892, era o menino bonito dos tifosi das estradas. A sua vitória de 1930 ficou marcada por um episódio que o elevou mais ainda no topo da pirâmide dos pilotos mais queridos de Itália: na fase final da corrida, disputada em noite cerrada, resolveu desligar os faróis do seu Alfa e jogar com a escuridão como se fosse um fantasma, desbravando a estrada que lhe faltava para cortar a meta em primeiro.
Nuvolari voltaria a sair vencedor das Mille Miglia, em 1933, mas entretanto uma armada alemã preparava-se para derrotar os italianos no seu próprio terreno, fazendo disso questão de honra – de 1927 a 1938, só num ano a vitória não foi italiana. É precisamente disso que estou a falar.
A invasão alemã
Na quinta edição das Mille Miglia, o contingente alemão da Mercedes surgiu na máxima força. Ao tempo, os automóveis também eram motivos de profundas rivalidades e não havia nenhuma potência mundial que não quisesse provar que era capaz de construir os melhores e mais fiáveis bólides. A Europa vivia ainda as sequelas do grande crash da bolsa norte-americana. A Daimler-Benz sofreu um abalo fortíssimo o que a obrigou a deixar cair o contrato que tinha com a jovem estrela do automobilismo internacional, Otto Wilhelm Rudolf Caracciola, natural de Remagen, não longe de Colónia. Caracciola, com aquele nome a puxar para o italiano, comprometeu-se com a Alfa, mas o mundo virou-se do avesso no entretanto. Com dois carros entregues a dois pilotos tão experientes como agressivos, Nuvolari e Arcangeli, a marca lombarda resolveu ceder o piloto à Mercedes. Afinal, vendo bem, dos 99 pilotos inscritos, um terço guiava Alfas. A vitória era praticamente garantida e seria a quarta para a marca. Os ingleses apresentavam-se pela primeira vez, com Charles Goodacre e o seu Austin Seven. Quanto ao estreante Otto, tudo lhe parecia um sonho: «Estiquei o mapa de Itália na minha frente e senti-me uma espécie de Napoleão», contaria mais tarde. «Na oficina junto ao hotel, mais de 90 mecânicos da Alfa trabalhavam a noite toda. Imaginei o milhar de milhas que teria de enfrentar, de Bréscia até Bolonha, e depois de Florença a Roma, o atravessar das montanhas dos Abruzzos até ao Adriático, e de novo Bolonha, seguindo-se Treviso no regresso a Bréscia. Dezasseis horas de condução intensiva, estradas de empedrado, outras de macadame, a travessia das pequenas vilas, tudo à máxima velocidade possível».
Caracciola partiu como uma flecha logo de início, batendo o recorde de velocidade atingindo a média de 96 milhas por hora (uma milha corresponde a 1,609344 quilómetros), baralhando a tática dos italianos que esperavam ganhar avanço na primeira metade da prova. Além disso, os problemas acumulavam-se: Varzi teve de desistir com o motor em pedaços, Nuvolari viu-se a braços com problemas de pneus, Campari com uma fuga de óleo. A noite seria o trunfo dos que corriam em casa e foi notória a dificuldade de Otto em permanecer no topo até ao nascer do sol. Finalmente, recuperada a luz, tornou-se no primeiro estrangeiro a vencer as Mille Miglia. O Mercedes-Benz SSKL cumprira igualmente o seu serviço. Havia quem estivesse certo de um facto: a vitória dos alemães iria valorizar a prova que deixava de ser uma corrida caseira. O mundo olharia para ela com outros olhos.
As Mille Migla aguentaram até ao início IIGrande Guerra, mantendo-se no calendário com apenas uma interrupção, a do ano de 1939 na sequência do acidente do ano anterior que ceifou a vida a dez espetadores. Em seguida fechou inevitavelmente entre 1941 e 1946, para profundo desgosto de Benito Mussolini. Depois de Caracciola alinharam-se mais sete vencedores italianos consecutivos – Baconin Bozachini, Tazio Nuvolari, Achile Varzi, Carlo Maria Pintacuda, Antonio Brivio, Carlo Maria Pintacuda e Clemente Biondetti, todos em Alfas. Em seguida… Bem, em seguida, deu-se outro daqueles acontecimentos mágicos que não mexem apenas com o desporto mas também com a vida. Enquanto Enzo Ferrari abandonara a vida de piloto para começar a construir os seus próprios carros, abandonando a Alfa onde trabalhara muitos anos, a Alemanha nazi apresentou uma escuderia prateada de cinco BMW 328 Berlinetta Touring. A Europa precisava de saber, fosse onde fosse e em que dimensão fosse, que a superioridade germânica não era para discutir. Era para ser vista e admirada. A grande favorita Alfa foi completamente arrasada pelo novo design, da autoria do Professor Wunibald Kamm, próprio para potencializar a velocidade dos motores, reduzia ao mínimo a turbulência sentida dentro da carlinga. O domínio foi completo. Além do primeiro lugar conquistado por Fritz Sittig Enno Werner von Hanstein, filho de uma poderosa família prussiana que faria parte das SS e cumpriria várias provas com o emblema das Schutzstaffel a adornar-lhe a carroçaria, a BMW arrancaria o terceiro (o segundo coube a Farina, da Alfa), quinto e sexto lugares. Em seguida a Europa ouviu rugirem, bem mais alto do que os motores dos BMW, as lagartas dos panzer que entraram em França como uma faca quente num hexágono de manteiga.
Estertor e morte
Ainda hoje se realizam as Mille Miglia, mas a verdade é que são pouco mais do que uma prova clandestina. No final da IIGrande Guerra, o entusiasmo em redor da competição renasceu, sobretudo porque havia gente nova a apresentar projetos novos. Ficou decidido que se retomariam as corridas no ano de 1947. Parecia que estávamos perante um dejá vu quando Clemente Biondeti chegou no primeiro lugar conduzindo um Alfa Romeo 8C 2900 B Berlinetta Touring, cujo desenho tinha ido buscar muito à obra do profssor Kamm. Mas, agora, era preciso estar atento à potência que acabava de entrar no mercado para se transformar na marca mais famosa e gloriosa de todos os tempos: a Ferrari.
Enzo Ferrari não era homem para brincadeiras. Na sua juventude fora mecânico da Alfa, sabia tudo quanto havia para saber sobre motores, tornara-se um piloto com provas dadas e atingia o sonho de fabricar automóveis com o seu nome inconfundível. Não havia quem não quisesse, nem que fosse por uma vez, ou por conta própria, participar de um grande prémio com o carro do cavalinho rompante. Biondetti venceu as Mille Miglia de 1948 e de 1949 já com as mãos em dois Ferraris, cada vez mais evoluídos: Ferrari 166 S Coupé Allemano; Ferrari 166 MM Barchetta Touring. Nos quatro anos que se seguiram, a Ferrari ganhou com a naturalidade de um garoto que apanha papoilas em campos de gipsofila, tendo Giannino Marzotto, Luisi Villoresi, Giovanni Braco e de novo Giannino Marzotto como pilotos.
Em 1954, outra escuderia italiana, a Lancia, com o grande Alberto Ascari como cabeça de cartaz, ele que fora campeão do mundo de Fórmula 1 no ano anterior pela Ferrari, chegaria na frente. Em 1955, o inglês Stirling Moss, num Mercedes-Benz 300 SLR, foi pulverizante: terminou o percurso em 10 horas, 7 minutos e 48 segundos, recorde que se mantém até hoje, voando a uma média de 158 quilómetros por hora. Finalmente, a tragédia de 1957 pôs fim à aura elegante das Mil Milhas. Dois acidentes iniciais, envolvendo Behra e Moss ativaram a confusão. Finalmente, Alfonso Cabeza de Vaca y Leighton, 11º Marquês de Portago, pôs um ponto final na corrida dos fidalgos ao sair da estrada, esmagando dez pessoas, entre as quais três crianças. O seu corpo foi encontrado partido a meio a dez metros de distância do automóvel que conduzia: um Ferrari. Com ele morreu a beleza das Mille Miglia.