por Filipa Moreira da Cruz
Esta questão é-me colocada várias vezes ao longo do dia. Os franceses têm-na na ponta da língua e respondem por automatismo: ça va. E eu não fujo à regra porque ninguém está interessado em ouvir um desabafo, uma apreensão. Ninguém tem tempo para lamurias nem queixas. Ninguém se preocupa com os problemas dos outros nem as vidas alheias. Ninguém quer saber se estamos bem ou mal. Quem nos pergunta comment ça va está à espera de um simples ça va. Com os amigos a história é outra. Felizmente.
E se, de repente, começarmos a dizer… ça va pas?
Já passou um ano desde o primeiro confinamento. O que era impensável até 2020 tornou-se uma realidade. A nova normalidade engoliu os velhos hábitos. O cenário de um filme de ficção científica passou a fazer parte das nossas vidas. As imagens apocalípticas são o nosso quotidiano. O fim deste pesadelo teima em não chegar. Ça va pas!
No ano passado, em França, morreram 111 mulheres vítimas de violência doméstica. O número é mais baixo que o de 2019 (146), mas está longe do ideal 0. É verdade que ocorreram menos mortes, mas a violência doméstica aumentou consideravelmente desde a pandemia. O confinamento só veio piorar a situação de todas aquelas que não vivem num lar, mas sim numa prisão. Ça va pas!
A vacinação avança a passo de caracol. Os ricos contornam o sistema e conseguem doses pagas a preço de ouro. Lotes inteiros de vacinas desaparecem misteriosamente e outros são roubados, à descarada. Por outro lado, há tendas militares vazias, à espera de pessoas que teimam em não vacinar-se. Médicos e enfermeiros deitam frascos fora porque os utentes que estavam inscritos resolveram não aparecer. Ça va pas!
O desemprego na Europa atinge níveis assustadores e para muitos o lay-off continua, pelo menos, até ao verão. As próximas gerações vão herdar uma pesada dívida. Será o seu ADN económico-social. E isto num continente com uma reduzida taxa de natalidade. De acordo com dados apresentados pela Comissão Europeia, em 2018 houve 1,55 nascimentos por mulher. Apesar de tudo, a França continua a ser a campeã dos nascimentos do velho continente, mas os números também têm vindo a baixar. Ça va pas!
Os estudantes universitários são os mais sacrificados desde o início da pandemia. Não têm aulas presenciais há um ano, não têm recursos para comer nem aquecer os minúsculos estúdios que lhes servem de teto. Muitos viram-se obrigados a regressar à casa dos familiares. Outros têm vergonha e preferem sobreviver, mais mal que bem. Há ainda os que desistem da vida, de um dia para o outro. Fecham os olhos para sempre porque se recusam a ver este miserável mundo novo. Em Espanha, 40% dos jovens com menos de 25 anos estão no desemprego. Ça va pas!
Passaram quase cinco anos desde a assinatura do Acordo de Paris e estamos longe de conseguir reduzir os excessos que nos conduzem a uma catástrofe ecológica. O meio ambiente ainda não é uma prioridade para nenhum país. E de nada adianta apontar o dedo ao vizinho quando não limpamos a própria casa. A humanidade esteve em êxtase perante as fotografias das ruas vazias, dos animais que passeavam descontraidamente, dos oceanos que recuperavam a sua cor natural. Foi sol de pouca dura! Agora chocam-nos as máscaras lançadas na sarjeta e a quantidade de embalagens de comida e copinhos de cartão para o café atirados para o chão. Efeitos colaterais do take-away. Ça va pas!
Da próxima vez que me perguntarem comment ça va o melhor será ficar calada para evitar chocar os mais sensíveis ou dar um abanão aos mais distraídos.