Ainda não há muito tempo assisti através da televisão à missa dominical, naquele dia presidida por Sua Eminência o Senhor Cardeal-Patriarca de Lisboa. Estávamos em pleno confinamento – e toda a gente, já saturada com o dever do recolhimento obrigatório, suspirava pelo regresso à vida normal. Neste contexto, o nosso Patriarca apelava à serenidade necessária, à resignação e paciência essenciais para, em conjunto com o cumprimento das regras impostas, podermos ultrapassar estes difíceis tempos de pandemia.
Porém, em determinado momento da homilia, marcou-me particularmente esta chamada de atenção: «Ninguém desista de viver!». E continuando na mesma linha de pensamento, insistia: «Ninguém desista de viver, porque nós não desistimos de conviver».
Fiquei pensativo ao ouvir as suas palavras, que me deixaram inquieto e que, no momento presente, têm um significado muito especial. Como médico, percebo também o alcance do seu apelo e concordo com o seu ponto de vista.
Esta ‘bomba atómica’ que explodiu no mundo em que vivemos, por tudo o que trouxe consigo, afetou mais intensamente as pessoas vulneráveis – entre as quais os dependentes, os idosos, os residentes em lares e os doentes crónicos – que, de repente, se viram sós, sem o carinho dos familiares e sem a presença dos amigos. Daí, sentirem-se um peso para a sociedade. Ou mesmo, sem o revelarem, acharem que estão a mais, perdidos num mundo que já não é o deles, colocando-se-lhes a questão: «O que ando eu cá a fazer?».
Esta pergunta que faz doer o coração, mas infelizmente muito comum nos nossos dias, passou a ser recorrente. E algumas imagens televisivas, pondo em evidência o corte com os laços familiares a que os residentes em lares estão sujeitos, acabam por alimentar as suas dúvidas. É à luz desta realidade que devem ser entendidas as palavras de D. Manuel Clemente ao lançar aquela mensagem de esperança.
A propósito, cito o caso de uma idosa internada num estabelecimento hospitalar da capital no âmbito dos cuidados continuados, onde também presto serviço.
Acompanhada regularmente pela família, esta senhora viu-se de um dia para o outro privada do conforto familiar por força da pandemia. Quando a fui visitar, verifiquei com espanto que tinha na sua cama um urso de peluche ao qual dispensava todos os carinhos, como se fosse uma criança. Curioso com a situação, um dia perguntei-lhe: «A senhora tem de me explicar o que representa para si o seu ursinho. Por que razão a vejo sempre com ele?». Ao que ela me respondeu de pronto: «Representa para mim a família, os amigos, os afetos… Faz-me sentir presa a esta vida, que se modificou completamente. Ajuda-me a matar as saudades».
Nunca mais esqueci o caso desta senhora que não desistia de viver e tenho partilhado a sua história quando vejo alguém mais desanimado, descrente e derrotado pelas limitações impostas pela pandemia. Há sempre uma razão para viver. Ninguém está a mais. Todos somos necessários. É preciso paciência, saber esperar, cumprir com o que nos é pedido e aguardar pela vinda de melhores dias.
Com a experiência da minha prática clínica penso, contudo, que é fundamental rever o problema das visitas aos lares e hospitais. Os idosos e os doentes devem ter visitas, para não lhes ser cortado o contacto com a realidade. Em moldes diferentes, é certo, com testes rápidos, por exemplo, mas esta situação deve estar salvaguardada, até porque ninguém sabe quanto tempo mais vamos continuar nesta nova normalidade.
Se neste tempo difícil que ainda vivemos conseguirmos levar aos mais necessitados o ‘ursinho’ do nosso carinho, do nosso sorriso e da nossa palavra de esperança, cumpriremos a nossa missão. E, acima de tudo, estamos a contribuir para que, efetivamente, ninguém desista de viver!