Os últimos humanos. O fim da ética

Estamos nesse limiar de um outro humano. Há uma nova era já entre nós e será uma questão de décadas, a não ser que suceda algum apocalipse.

por João Maurício Brás

Vem aí a inseminação pós-morte, mesmo ao fim de dois a três anos do término da vida. Choca? Comove? É uma inevitabilidade e não pelas melhores razões. Não interessam casos particulares. As leis são gerais e estabelecem a normalização ou não de certas práticas. Interessa a dimensão sintomática desta lei.

Vivemos numa época onde já só predomina o legalismo, e a questão legal não é propriamente a dimensão ética ou moral. A ética e os valores acabaram, eram as nossas bússolas e o nosso chão, mesmo sabendo que o ser humano não é perfeito e que mata, rouba, agride e viola. O que sucederá a uma civilização regida apenas pelo direito processual?

O desenvolvimento da tecnologia leva-nos ao umbral de uma era pós-humana. A era da técnica que perdeu o saber do seu uso e interfere em todos os domínios da nossa vida é apenas enquadrada por regulamentos jurídicos. As questões éticas tornaram-se obsoletas, o que significa que a humanidade do humano está perto do fim.

Ficam algumas questões em que já não conseguimos sequer pensar. Se detivermos um meio para tudo realizar, tudo devemos fazer? Por que motivo nem tudo deve ser permitido? A cultura e a civilização assentaram na descoberta do que não se deve fazer, dos nossos limites.

O frenesim é uma das principais características humanas. A boa sabedoria radicava no controlo dos nossos apetites e paixões, das portas que não se abrem. O que não se deve fazer marcava esse limite de uma ideia de ser humano e civilização. Essa ideia foi substituída pelo «se posso, faço» e pelo «tudo posso». É moderno considerarmos os limites um problema técnico.

A ideia de crescimento ilimitado e sem barreiras, própria de uma visão hiperliberal progressista do «é preciso é ir em frente» tornou-se um dogma. O para onde nos dirigimos não interessa, porque perdemos o saber das causas e dos fins.

A gestação, a família, a maternidade, a progenitura, a morte e os sentimentos são apenas questões técnicas e legais. Num mundo em que os avanços da genética, da robótica e da inteligência artificial permitem a manipulação radical da evolução, o humano passa a pertencer ao passado. Melhorar o humano e fazê-lo mais feliz é afinal uma questão instrumental. Realiza os teus sonhos.

Porque não preservar o esperma durante mil anos? Porque não escolher o filho por catálogo? Porque não eliminar características pouco eficientes? Não pararemos, só temos, afinal, de revestir o nosso frenesim com um embrulho de benignidade e felicidade.

O debate resume-se já somente a questões pragmáticas, funcionais e utilitárias. A técnica oferece a solução: «Queres, terás». Não vale a pena grandes lamentos. Estamos na fase terminal do humano e vivemos em sucessivos experimentos contra a realidade. Quando for possível, porque não me clonar repetidamente? Porque não ter em simultâneo um pénis e uma vagina, três braços e quatro olhos? Porque não fecundar-me a mim próprio? Não está o primado da felicidade reduzido à minha subjetividade?

Estamos nesse limiar de um outro humano. Há uma nova era já entre nós e será uma questão de décadas, a não ser que suceda algum apocalipse.

 Os humanos conservadores olham para esse futuro já presente como uma catástrofe do humano. O novo ser olhará para o nosso fim como uma inevitabilidade, em que a transição não é brusca, mas progressiva. Nós, os do presente, seremos para o neohumano uma espécie de macacos.