Foi no passado dia 11 de janeiro que Setúbal viu partir um dos seus mais carismáticos médicos. Nessa manhã, o dr. Machado Luciano deixou-nos subitamente. Para trás, fica um conjunto de recordações não só como excelente profissional mas também como cidadão e como amigo, que recordo com saudade.
Médico da ‘velha guarda’ e cirurgião de elite, foi com ele que dei os primeiros passos no meu estágio de cirurgia no ‘velho’ Hospital de S. Bernardo, sob o olhar atento do meu pai que, na altura, dirigia o serviço. Ensinou-me muito, e não me esqueço da boa relação que tinha com os doentes e do carinho com que os acompanhava.
Contudo, se na área da Medicina o dr. Luciano deixou a sua marca e uma obra da qual a cidade se deve orgulhar, a sua colaboração no plano cultural, nomeadamente na Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão, de que foi presidente, e na Assembleia Geral de Setúbal-Polis, onde teve cargo idêntico, merece igualmente referência e destaque.
Um dia, já depois de concluída a sua carreira médica, cruzámo-nos na rua e perguntei-lhe como iria a partir daí ocupar o seu tempo. A resposta foi imediata: «Não consigo estar parado. Com tantas coisas bonitas que há para fazer, tenho obrigação de colaborar no que puder». Hoje, estando eu também à beira da reforma, compreendo melhor a sua ideia.
Este ponto é para mim crucial, por marcar na vida das pessoas a passagem para outro patamar. Para alguns, o final do serviço pode querer dizer o início da decadência ou mesmo o fim da linha. Nada mais errado. Claro que é preciso sabermo-nos retirar na altura certa, pondo de parte a tão conhecida teoria de que ‘sem mim nada vai funcionar’ ou ‘o trabalho que deixei, só eu sabia fazer’ ou ainda ‘tenho de continuar a aparecer no serviço para ajudar os outros’.
Ninguém é insubstituível. A vida continua. Porém, vir para casa após a reforma e ocupar o tempo no sofá da sala em frente à televisão, abdicando de referências e perdendo o interesse pela vida, não é nada saudável. Pelo contrário: é triste e deprimente.
Como afirmava este meu colega, «há muitas coisas bonitas para fazer» e cada um de nós tem obrigação de dar o seu contributo à sociedade. Perder tempo a pensar naquilo que nos é devido por termos trabalhado uma vida inteira não nos leva a lado nenhum. Como dizia J.F. Kennedy: «Não perguntes o que é que o teu país pode fazer por ti, mas o que tu podes fazer pelo teu país».
Neste caso particular, o dr. Luciano – tal como muitos que se destacaram pelo que fizeram para lá da sua atividade profissional – é um exemplo que não podemos esquecer. Um testemunho que fica.
Na minha vida clínica estou sempre a chamar a atenção daqueles que passaram à aposentação, lembrando-lhes que têm agora ‘outras coisas bonitas para fazer’.
Na cidade, na autarquia, no país, há muita gente à espera da nossa experiência, do nosso saber, da nossa palavra. Parar é morrer; e enquanto peregrinos nesta terra, cada qual tem a sua missão. Não desperdicemos os nossos talentos. Há que continuar a pô-los a render.
Infelizmente, nem todos pensam assim. Para muito boa gente, quando chega a idade de abandonar funções é comum dizer: «Já não tenho nada para fazer». Ou então: «Tenho todo o tempo do mundo». E o que se segue acaba por ser o reflexo desse estado de espírito: o refúgio nos serviços de saúde. A grande percentagem de utentes dos centros de saúde e de hospitais pertence precisamente ao grupo dos que ‘já não têm nada para fazer’ ou dos que ‘têm todo o tempo do mundo’.
Ao invés, quando temos conhecimento de casos que ultrapassaram as barreiras da idade e se mantiveram úteis para lá da aposentação, devemos enaltecê-los e recordá-los – para que as novas gerações sigam o seu exemplo e descubram uma nova forma de viver a vida.
Aqui presto a minha homenagem àqueles que vão ficando no ‘quadro de honra’ do nosso coração, associando-me ao pensamento de Antoine de Saint-Exupéry: «Os que partem antes de nós deixam um pouco de si, levam um pouco de nós».
(À memória do dr. Luís Machado Luciano)