O silêncio que o Governo moçambicano impôs sobre o conflito em Cabo Delgado mantém-se, mas, face ao ataque à vila de Palma, todos os olhos se viraram para o conflito. Com a rede móvel da vila – que terá sido destruída pelos insurgentes – ainda em baixo, continuamos sem saber exatamente a extensão da carnificina, quantas tropas enfrentam os jiadistas, que baixas sofrem, que meios possuem, o que lhes faz falta. No entanto, a pressão sobre Maputo aumentou. E foi preciso haver vítimas entre estrangeiros – incluindo um português cujo veículo foi emboscado, mas conseguiu resgatar 26 pessoas mesmo após ser baleado – e trabalhadores das petrolíferas para isso acontecer, lamenta Pedro Neto, diretor executivo da Amnistia Internacional Portugal, ao i.
“É uma análise que me custa fazer, e que me deixa com algum desânimo”, diz Neto, cuja organização tem redigido vários relatórios sobre o conflito nos últimos anos, revelando abusos da parte dos jiadistas, afetos ao Estado Islâmico, mas também da parte dos mercenários contratados para os combater e das próprias forças governamentais
“O que me custa é que quando se põe em causa investimentos como o da Total e de outras multinacionais que estão a explorar o território – não tenho nada contra o seu trabalho em si – há maior interesse. E quando estão em causa vidas humanas há menos interesse”, refere. “Temos de reverter prioridades”.
O dirigente da Amnistia não é o único a queixar-se disso. “Nós vivemos uma situação de terrorismo em Cabo de Delgado desde 2017”, lembra Ivone Soares, deputada e antiga líder parlamentar da Renamo, o maior partido da oposição moçambicana, ao i. “E, não obstante todos os esforços do Governo, a sensação que se tem é de que há mais preocupação em proteger os investimentos na península de Afungi que em proteger vidas”.
Entretanto, a tragédia continua. Os refugiados que procuraram abrigo nas prospeções em Afungi, fortemente protegidas por mercenários, estão a ser evacuados por mar e por ar para a capital distrital, Pemba, outros a acorrem à vizinha Tanzânia, enquanto muitos outros se esconderam no mato – o i falou com várias famílias em Pemba, que ainda não sabem dos seus entes queridos fugidos durante o ataque. Contudo, mesmo em Pemba a situação não está fácil.
“Pedimos a vossa mão, o vosso socorro”, implorou o padre Kwiriwi Fonseca, da diocese de Pemba. “Muita gente está nas matas, muita gente precisa de alimentação”, alertou, numa mensagem áudio ouvida pela Renascença. Acrescentando que as autoridades moçambicanas proibiram todas as tentativas de perceber a situação nos arredores de Palma. “Alguns, raríssimos, que foram para lá, não conseguiram aproximar-se. Porque a orientação do Governo é para não tirar nem fotos, nem fazer algumas gravações”.
“É um estilo de governação baseada no silêncio, no secretismo, que não nos deve surpreender”, refere Ivone Santos, salientando que a natureza da Frelimo “foi sempre de secretismo, desconfiam de tudo e todos. Mesmo dos próprios cidadãos moçambicanos”.
Ponto de não retorno É óbvio para todos que o conflito em Cabo Delgado, inicialmente tratado pelas autoridades como um mero problema de banditismo, entrou numa nova fase. Nem que seja porque o grupo insurgente – conhecido pelos locais como Al-Shabaab, pela semelhança com os jiadistas da Somália – demonstra uma sofisticação cada vez maior, como se viu no ataque a Palma, uma das vilas mais protegidas, que foi amplamente documentado pela própria agência oficial do Estado Islâmico, a Amaq. Uma capacidade que se reflete na escala do sofrimento dos civis
“Durante muito tempo, a população das aldeias fugia para o mato para ir dormir, ao entardecer porque sabiam que, muito provavelmente, as suas aldeias seriam atacadas, assaltadas e incendiadas”, recorda Pedro Neto. “Agora estamos numa nova fase, ainda mais grave, em que estas pessoas não regressam de manhã, saem para meios urbanos, como para Pemba”.
“O Governo moçambicano tem tentado esconder a situação”, acusa. “Nós documentámos a detenção de jornalistas a trabalhar no terreno, até a perseguição e intimidação de investigadores da própria Amnistia Internacional. Bem como a difamação e ameaças de morte contra o bispo Dom Luiz Lisboa, da diocese de Pemba, por ter sido uma voz forte na denúncia de tudo o que está a acontecer”.
“Mas já não é possível encobrir o que está a acontecer. A tragédia está à vista de todo o mundo”, considera o dirigente da Amnistia. Contudo, o aumento da atenção ainda não começou a surtir efeito no auxílio aos cerca de 700 mil deslocados pelo conflito. Face à maré humana, faltam itens básicos, como comida e medicamentos, às agências humanitárias das Nações Unidas, avançou a Lusa.
As doações ainda só cobriram 10% do apelo para arrecadar 216,31 milhões de euros para apoiar Cabo Delgado, feito em dezembro – juntando-se os refugiados de Palma, o que há só cobre 30% das necessidades identificadas. Entretanto, vão surgindo os apelos de solidariedade, como do secretário-geral da União das Cidades Capitais da Língua Portuguesa (UCCLA), Vítor Ramalho. “Pelos meios ao nosso alcance, sensibilizemos os poderes públicos nacionais e internacionais para que se obtenha uma resposta inadiável e eficiente”, apelou, em comunicado. “Devemo-nos todos sentir cidadãos de Cabo Delgado”.