O tempo não está de modas e a violência paira no ar. A violência gera violência. E a verdade é que sabemos como começa um ciclo de violência, mas nunca como acaba.
A semana foi cheia de emoções. Uma sentença que absolve acusados e condena a justiça, dizem. O sentimento de revolta que se propaga com o nosso ex-primeiro-ministro a insultar a inteligência e a ética dos portugueses em horário nobre. As lutas de audiências que justificam a degradação moral ao ponto mais fundo que um país parece poder ir: o descrédito elementar, a total ausência de sentido de preservação das instituições e da decência do espaço público.
Vem isto a propósito da peça Catarina e a beleza de matar fascistas, que na próxima semana será encenada no Teatro Nacional D. Maria II, provavelmente a sala de teatro principal do país. O texto é do seu diretor artístico, Tiago Rodrigues, mandatário da candidatura de Marisa Matias. Com o patrocínio da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, da Rádio Renascença, emissora católica portuguesa, do BPI e de outras tantas instituições primeiras do país.
Em poucas palavras, a peça desenvolve-se em torno de uma ficção: a beleza de uma tradição antiga, que ocorre em contexto familiar e que consiste numa coisa divertida: matar fascistas. E a partir do escrúpulo de um membro da família que resiste ao prazer da tradição, discorre-se sobre as questões profundas que podem estar subjacentes à beleza de matar um fascista.
Num texto promocional, dizia-se que a peça pretende «usar o teatro para ensaiar a vida». «Estamos a ensaiar o que poderá ser levado a cabo depois de o termos imaginado no teatro». O texto sugeria uma realidade «ficcional, mas apenas por agora». Em entrevista recente, Tiago Rodrigues dizia que «a palavra fascista ainda não foi normalizada e até um fascista fica incomodado de ser chamado de fascista». Eis o mote do argumento.
Voltemos ao tema da semana. A avaliar pelas reações, até Sócrates (segundo Ivo Rosa o corrompido, ainda que em parte prescrito) fica incomodado com o termo corrupto. Ao contrário do que se passa com o comunismo, eis outro exemplo de uma palavra não normalizada. Seria, pois, ocasião de provocação intelectual. Faça-se então o exercício de substituir o termo fascista por corrupto, no texto de apresentação da peça teatral disponível no portal do Teatro Nacional D. Maria II.
Dir-se-ia assim: «Esta família mata corruptos. É uma tradição antiga que cada membro da família sempre seguiu. Hoje, reúnem-se numa casa no campo, no Sul de Portugal, perto da aldeia de Baleizão. Uma das jovens da família, Catarina, vai matar o seu primeiro corrupto, raptado de propósito para o efeito. É um dia de festa, de beleza e de morte. No entanto, Catarina é incapaz de matar ou recusa-se a fazê-lo. Estala o conflito familiar, acompanhado de várias questões. O que é um corrupto? Há lugar para a violência na luta por um mundo melhor? Podemos violar as regras da democracia para melhor a defender? Entretanto, surge por vezes o fantasma de uma outra Catarina, a ceifeira Catarina Eufémia que foi assassinada em 1954 em Baleizão durante a ditadura de corruptos. Catarina Eufémia aparece durante a noite, enquanto a família dorme, para conversar com o corrupto de 2028 que aguarda o seu destino».
Ao corrupto poderíamos juntar o juiz vendido (a versão original da peça inspirava-se no juiz Neto de Moura, autor de polémica sentença sobre a violência conjugal), o procurador feito assessor da ministra que nunca deixou de ser o que já tinha sido, os pedófilos e tantos outros exemplos que são objeto «não normalizados» de ódio.
Esta semana, a mãe de António Costa, Maria Antónia Palla, perguntava-se incrédula em artigo de opinião: Sócrates, porquê tanto ódio? E confessava-se comovida com a coragem daquele que «lutou pelo que considera ser a sua verdade». Fez o papel de Catarina.
Neste palco da vida em que os mesmos condenam e absolvem, pouco sobra para lá da violência com que desferem as suas sentenças. E quando a violência é arma de arremesso é tempo de pensar se não será hora de seguir outro caminho. Ocorre a expressão bíblica: a medida com que julgam, serão julgados.
A peça está esgotada. Quando for aplaudida, certamente de pé, por uma plateia extasiada com perguntas como «há lugar para a violência na luta por um mundo melhor? Podemos matar para melhor defender a democracia?» haverá alguém a preparar-se para os efeitos dessa perversão?
A pobreza, a doença, a solidão, o medo, a frustração estão por aí, espalhados como palha seca. Juntem-lhe isto tudo e uma semana pode bem ser um teatro assustador. Aos atores desta semana, a todos eles, um aviso antigo: quem semeia ventos colhe tempestades.