Por João Maurício Brás
O caso ‘Sócrates’ é apenas mais um sintoma do nosso atraso. Mas estamos ou somos atrasados? É uma velha questão, esta do debate sobre se os povos têm características intrínsecas e quais – ou seja, se existem modos de ser ou se o que existem são modos de estar. Saber se há uma essência do português, do espanhol, do alemão, do chinês faz e bem parte do baú das teses sem validade. A utilização de características ônticas de um povo para legitimar discursos políticos, de apologia ou submissão tiveram os resultados que conhecemos. Uma essência identitária remeteria para uma espécie de um fatalismo. Se assim é, assim foi e sempre assim será. O que é falso. A natureza humana existe, mas a nossa identidade cultural é principalmente um modo de estar. Um povo não é só o que é num determinado momento, fruto do seu passado e de uma série de contingências e ou inevitabilidades, mas também a ideia daquilo que quer chegar a ser. A ideia que tem do que pretende do futuro e o que por isso faz é decisivo na sua identidade. A nós falta-nos uma ideia de futuro e por isso repetiremos uma e outra vez os mesmos erros e vícios.
A identidade de um povo ou de uma cultura não é essencialista. Há sim estruturas de fundo, que se consolidam ao longo de séculos, bem como práticas e mentalidades que se forjam e sedimentam na longa e média duração. O tema do nosso atraso é já uma marca identitária porque ressurge sempre nos últimos cinco séculos no debate de Portugal sobre si mesmo. Não é de facto possível pensar Portugal sem esse conceito, mas ele compreende-se nas tais estruturas de fundo.
O nosso atraso é uma obsessão permanente assim como as ideias de ser europeu, moderno, desenvolvido e progressista. Sim, estamos atrasados em relação àqueles com quem nos queremos, por direito próprio, comparar. Portugal mudou significativamente em vários indicadores nas últimas décadas, mas não no principal, já que as mudanças resultam de imposições exteriores. A União Europeia com os seus fundos e as suas regras impostas obrigou Portugal a transformar-se, mas os outros também mudaram e são profundas e brutais as diferenças para aqueles com que nos queremos comparar.
Falhamos e fazemo-lo até intencionalmente, porque fingimos que aceitamos os diagnósticos certeiros e estamos a levar a cabo mudanças de fundo. As mudanças de facto não surgem por decreto, e principalmente os responsáveis pelos problemas e as práticas que os originam e perpetuam não podem fazer parte da solução como é também recorrente no nosso caso. Um outro aspeto fundamental é que se a Economia é um pilar fundamental das sociedades, o problema do atraso português é principalmente um problema de mentalidades e comportamentos, no fundo, um problema cultural. Continua a não haver visão de longo prazo, mérito, planificação, exigência e rigor. O esquema, o desenrascanço, os favores, as dependências e o compadrio são ainda virtudes lusas. As velhas estruturas continuam atuantes.
O tipo de absolutismo e centralismo político atravessou os séculos até hoje; o rapinanço, a inimputabilidade dos poderosos, o senhor doutor, os grupos económicos e outras elites medíocres permanecem. Veja-se a subserviência dos ‘intelectuais’ e dos média, as formas de caciquismo, o trânsito entre a política, negócios, leis e a economia. A promiscuidade da estrutura piramidal do poder na nossa sociedade não foi resolvida.