por Sofia Aureliano
Li, há dias, nas gordas, que “Ventura espera um milhão de votos nas legislativas”. E pensei: “eu também espero, um dia, ganhar o euromilhões”. E arrumei a coisa assim, sem ansiedades.
Mas, mais tarde, voltei a pensar no tema, indignada, não sei se mais com o topete de Ventura (que já não consiste novidade), se com a rapidez com que despachei o tema. Na realidade, não é preciso ser um génio da matemática para perceber quem tem mais probabilidades de conseguir o que deseja: Eu, nem sequer jogo no euromilhões. Já Ventura é craque em jogos de cintura, berra como um cheerleader, faz criativas manobras de diversão que lhe dão, invariavelmente, os dez segundos da peça de resumo do debate do dia no jornal da noite e, somando tudo, horas de clipping mensal em canal aberto. Podem falar mal à vontade, mas falem sempre. É essa a máxima e é assim que ele vai ganhando pontos.
Quanto a mim, só podia estar anestesiada com alguma manchete mais sumarenta, porque o mais normal teria sido inquietar-me imediatamente só com a ideia de que quase 20% da população portuguesa votante pudesse escolher uma alternativa legislativa que defende a liberdade dos cidadãos, desde que, sobre certos domínios, seja manifestada exclusivamente entre as quatro paredes do seu lar. Que assume a diferença como “pedra angular” do seu programa, mas tantas vezes dá exemplos de combate agressivo contra os que pensam de forma diferente. Que se diz fundada no pensamento de Montesquieu, que defendia a emergência natural de uma identidade nacional, oriunda da realidade social de cada povo e da relação com a sua História, e objetivamente limita o pensamento de todos os potenciais seguidores a doutrinas predefinidas, escritas em forma de princípios base, apresentando uma única identidade já concetualizada como produto final. Aceitam ou aceitam.
Montesquieu criticava efetivamente toda a forma de despotismo, mas não apreciava particularmente a ideia de o povo assumir o poder. Preferia que uma classe aristocrata de “iluminados” o fizesse. Talvez tenha sido nesta ideia de “democracia” que o Chega tenha encontrado o conforto que procurava, para se dizer alicerçado no pensamento do barão francês.
Acredito verdadeiramente que a maioria das pessoas que já votou ou pensou votar neste partido, fê-lo com a intenção de castigar qualquer outro, num manifesto de insatisfação pela incoerência entre o que lhes é oferecido e o que verdadeiramente lhes tem sido dado. São, por isso, os chamados votos de protesto.
Isto porque, acaso os eleitores do Chega conhecessem o programa eleitoral do partido, as suas reais ideias, as suas propostas para o país, que vão muito além dos soundbytes que Ventura clama e, qual novo profeta, vão exatamente ao encontro do que uma maioria de indignados, exaltados e aborrecidos com a vida quer ouvir, saberiam o quão perigoso e nefasto pode ser o ato de votar, não por convicção, mas por castigo.
E não é nefasto porque afastam os “habituais” do poder. É muito perigoso porque, manipulados, podem levar até ele lobos mascarados de cordeiro, que só querem entrar disfarçadamente nas muralhas democráticas e fazer a república implodir por dentro. Qual Cavalo de Troia, alimentado a ódio, a medos e a rejeição.
Não acredito que, conscientes das verdadeiras ambições do Chega e do que se compromete fazer num cenário (dantesco) em que chegasse ao poder, um milhão de portugueses pudesse concordar com um retrocesso civilizacional de tal ordem, a que dissimuladamente chamam de conservadorismo liberal.
Na semana em que se celebra a Democracia, pensemos que é graças a ela que somos livres para pensar, para votar, para errar. Também é graças a ela que existe o Chega e a possibilidade salutar de escolher.
Não vivi a censura, nem vou dizer hipocritamente que senti na pele o verdadeiro significado do que foi conquistado. Mas compreendo e, sobretudo, agradeço a bênção da liberdade quando constato que devo à Democracia o facto de poder expressar livremente o meu pensamento e é, por ela existir, que estas linhas que leem não estão rasuradas. O valor da liberdade não é mensurável. Por isso, devemos ponderar bem nas consequências dos nossos atos, para não ter nunca de vir a pagar qualquer preço por ela.
Não faço juízos de valor baseados em orientações ideológicas. Porque cada vez mais sinto que a ideologia está sem orientação. Desnorteada, violentada, usurpada.
De que vale evocar grandes pensadores quando o caminho não se constrói sobre opinião ou ideia, mas sobre preconceito? E, para futuro, apenas se promete o caos, a desordem e uma mão cheia de nada.
“A primeira sensação que experimento ao encontrar-me na presença de uma criatura humana, por humilde que seja a sua condição, é da igualdade originária da espécie. Uma vez dominado por esta ideia, preocupa-me muito mais do que ser-lhe útil ou agradável, o não ofender nem ao de leve a sua dignidade.” Esta frase não é minha, embora a subscreva na íntegra. É de Alexis de Tocqueville. Outro pensador político que o Chega chama ao seu programa, como base estrutural de pensamento.
Conseguem ver semelhanças entre a teoria daqueles em que se dizem inspirar e a prática do seu dia-a-dia? Entre o que o Chega faz e o que profecia?
Ofereço uma raspadinha a quem conseguir.
E, pelo sim, pelo não, esta semana jogo no Euromilhões.