A semana foi de ressaca. Depois da depressão Lola, que Ivo Rosa e Sócrates anteciparam, as comemorações do 25 de Abril tinham tudo para correr mal. Marcelo Rebelo de Sousa com o seu superdiscurso foi a super Lua que ajudou – e muito – a que o país falasse menos do incómodo do regime.
Um regime seja ele qual for vive da bondade com que é percecionado. E qualquer regime seja ele qual for será sempre instrumental diante dessa aspiração de bondade por parte daqueles que o suportam. Falar de corrupção é, pois, um incómodo.
A história da corrupção política cruza-se no Portugal democrático com a história do PS. Dir-se-á não apenas com a do PS. É certo. Esta semana notícias envolvendo um ex-autarca do Bloco de Esquerda são apenas mais um exemplo. E haverá exemplos de variadas cores.
No entanto, o ponto é este: a permanência prolongada no poder convida ao facilitismo e abre a porta à confusão de interesses partidários ou pessoais com o exercício público. Lord Acton dizia que o poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente. Sempre que o regime esteve mais exposto à hegemonia de um partido esteve também mais exposto à corrupção.
O que faz impressão nem é isso – que a história da corrupção se cruze com a história do PS –, mas sim que a instituição do Partido Socialista declare não tenha nada a aprender com a sua pior história.
Vem isto a propósito da reação do Partido Socialista às declarações de João Cravinho. Dizia João Cravinho uma coisa simples: Quando se fala de corrupção, o PS não pode passar à margem da sua responsabilidade histórica. «O PS não pode fingir que não houve um período em que o partido com maioria absoluta, empenhou toda a sua capacidade política contra a ideia de se combater sistemicamente a fundo a corrupção. Isso é que faz parte da história do PS».
João Cravinho falou como ex-dirigente e ex-governante do Partido Socialista. E quando falou, falou como quem gosta do partido a que pertence. Pretendia ouvir um pedido de desculpas ou qualquer outro tipo de assunção de responsabilidades. Disse aquilo que para qualquer um é bastante óbvio: a regeneração do passado pressupõe também a noção de que se aprendeu com ele. Sem isso, não é possível confiar que qualquer coisa pode mesmo mudar.
Pela voz da politicamente apagada Constança Urbano de Sousa – e ninguém acredita que não tenha sido mandatada por António Costa –, o Partido Socialista reagiu de modo mais do que deselegante, insultuoso. Em vez de demonstrar disponibilidade para um debate sério sobre o que estava em causa, optou por sugerir que João Cravinho está velho («deve estar com a memória um pouco afetada»). A violência da resposta é um sinal claro: entre o regime e o Partido, a opção será a salvaguarda do Partido.
A questão então é esta: como podem os portugueses acreditar que o regime pode ser regenerável se o primeiro-ministro continua a louvar, diretamente ou por interposta pessoa, a coragem de quem ‘luta pelo que considera ser a sua verdade’, mesmo quando essa ‘verdade’ – está aos olhos de todos – é uma soma de aldrabices e de insultos à honestidade elementar? Como podemos confiar num Governo que reitera práticas – na escolha dos procuradores europeus, dos assessores-magistrados ou na compra da imprensa – que conduziram ao pior? E os exemplos poderiam prolongar-se noutras esferas: como podem os lisboetas acreditar em Fernando Medina quando este não só se furta a explicar as dúvidas de legalidade que visam um dos membros da sua equipa como declara que, não obstante tais dúvidas, continuará a consultá-lo e a envolve-lo nos seus trabalhos, num sinal de força e de impunidade que não se deixa intimidar por nenhum poder judicial?
Estas perguntas não decorrem de vingança política, apoucamento injustificado ou de concorrência eleitoral. São elementares para quem quer a preservação das instituições. Enquanto o regime contornar os embates mais difíceis consigo próprio – não a verdade em que cada um acredita, mas a melhor que é capaz de exibir – estará a escancarar as portas a quem lhe deseja mal.
Voltemos então ao super discurso de Marcelo Rebelo de Sousa: nos balanços entre passado e presente, só o melhor de nós próprios em cada momento poderá representar o fio condutor desta nação amável. Como dizia o nosso Presidente: «Que saibamos fazer da nossa história lição de presente e de futuro, sem álibis nem omissões, mas sem apoucamentos injustificados querendo (sempre) muito mais e muito melhor». Se assim não for, Abril será adormecimento e não aspiração democrática.