por Sofia Aureliano
Deixarei que a minha veia académica venha hoje ao de cima para, porventura, acalmar inquietações que, desta vez, não são minhas. Calha a que este tema ainda ontem tenha dado o mote a uma das minhas aulas. E, nem de propósito, estamos numa semana cheia de matéria-prima.
São os astros que se alinham.
A relação entre o humor e a política não é estanque, consensual ou pacífica. E nenhum investigador sério conseguirá dar uma definição concreta sobre os seus limites, os seus benefícios ou as suas consequências. Porque depende de muitas variáveis, muitas delas relacionadas com inteligência emocional e comportamento humano. Fiquemos, por isso, humildemente, pela constatação de factos, tentando ver os dois lados da moeda.
Para quem é alvo do humor é compreensível que ele possa ser sentido com desconforto, como um ataque direto injustificado. Mas acredito que essa perceção perderá o fundamento se não nos levarmos muito a sério. Na verdade, é arrogante achar que somos especiais porque nos dedicaram alguns minutos de um gracejo. Somos apenas matéria de trabalho que, circunstancialmente, se considerou que fazia sentido utilizar naquele dia, naquela hora.
Este jogo de cintura não é inato, constrói-se. A maioria de nós não nasce com a capacidade salutar de se rir de si mesmo. Mas com o tempo, e a maturidade que ele traz, vem a experiência e descobre-se o segredo: primeiro estranha-se, depois entranha-se. E acabamos por conseguir ver os benefícios do humor. Mesmo quando somos os visados.
A política é normalmente entendida como uma coisa aborrecida, que trata temas demasiado sérios e chatos. Para problemas, já basta os que temos na vida. É por isso que muita gente prefere o entretenimento aos telejornais, ou os telejornais se têm vindo cada vez mais a transformar em programas de entretenimento. Porque se quer dar ao público o que ele mais consome. Mesmo que não seja o que lhe é mais benéfico ou necessário.
O humor, que é um formato de conteúdo maioritariamente muito bem recebido, precisa de matéria-prima. E a política e os atores políticos, como figuras públicas preponderantes da esfera mediática, são perfeitos protagonistas. Especialmente se não lidarem bem com o facto de serem matéria-prima para o humor. Quanto mais irritados se mostrarem, melhores alvos serão. Caso contrário, qual é a pica que dá provocar quem tem poder de encaixe?
A forma como se reage ao humor diz muito sobre cada pessoa e a capacidade de dominar a sua inteligência emocional, ou seja, gerir as suas emoções, saber identificá-las, controlá-las, compreender a empatia e a forma mais eficaz de se relacionar consigo própria e com os outros. É uma das soft skills mais importantes para o homem, diferenciadora para o político, e o humor é um dos seus principais barómetros.
A brincar também se abordam temas sérios e, muitas vezes, é só mesmo através destes formatos que as pessoas têm contacto com algumas temáticas. Devemos, por isso, muito ao humor, pelo contributo pedagógico que dá e por, de forma subtil, colocar temas relevantes na agenda diária. O humor também provoca reflexões, espoleta posições e fomenta considerações sobre assuntos que, de outra forma, não seriam abordados.
No fim do dia, pensemos nisto: o humor humaniza. Mesmo quando faz troça ou parece ter um alvo único a atingir.
Despidos de manias da conspiração e à distância fria dos factos, escrutinemos um caso prático. No fim de semana passado, o “Isto é Gozar com Quem Trabalha”, apresentado por Ricardo Araújo Pereira, focou-se essencialmente em fazer humor com dois partidos políticos: o PS, em concreto, o governo, e o PSD.
Com uma extensa rábula a invocar o programa da concorrência com que há um mês combatia audiências, Ricardo Araújo Pereira fez a analogia entre candidatos autárquicos do PSD e concorrentes do Big Brother. A ditadura das audiências é feroz e, também ele, tem objetivos contratuais a cumprir. Para garantir a vitória na guerra pelo share, foi preciso ir buscar a rainha dos reality, que tantas vezes o humor já caricaturou.
Teresa Guilherme, que revelou um fair play exemplar, só possível para quem não tem inseguranças, aproveitou o convite para dar umas chapadas de luva branca e passar uma mensagem. Ela é efetivamente a melhor e nenhuma cópia supera o original. Tem jogo de cintura para lidar confortavelmente com o humor, de qualquer dos lados da barricada. E, não tendo contrato com a TVI, está livre e solta para novas relações profissionais, por exemplo, no canal da concorrência que, naquele momento, estava a ajudar a liderar audiências. Uma jogada de mestre, digna de vénia.
E será que esta participação garantirá que, pelo menos, num futuro próximo, Teresa Guilherme não servirá de matéria-prima para aquele programa de humor? Claro que não. E viverá bem com isso.
Ricardo Araújo Pereira pode manter a persona de puto impreparado e atrevido que faz o que quer de forma leve e solta porque quando acorda já é genial, mesmo sendo preguiçoso, porque é o rosto de uma vasta equipa criativa que permite a sobrevivência da falácia de que tudo é feito sem esforço e sem agenda. Mas não existem almoços grátis em televisão e nunca a guerra foi tão comercial. Há metas a cumprir e também ele tem compromissos, responsabilidades e concorrentes competentes que o mantêm bem pressionado.
Por isso, joga pelo seguro e escolhe caricaturar o bloco central, os dois partidos de poder que representam mais eleitorado e que vão garantir que mais gente será impactada e manterá viva a rábula por mais uns dias. Não é um brilhante e arriscado golo de bicicleta, mas cumpre os mínimos: a bola entra na baliza e soma no marcador.
O resultado, programa após programa, arranca umas gargalhadas, mas nem sempre é extraordinário. O que é uma pena. Porque tinha condições para chegar muito mais longe e surpreender. Pessoalmente, gostava de ver até onde Ricardo Araújo Pereira podia chegar se, ao seu enorme talento, juntasse mais algum suor.