Por Elsa Severino
Arquiteta paisagista
O ‘prazo de Alcântara’ou importância do genius loci
A encosta do Vale de Alcântara, a ribeira e a sua desembocadura no Tejo, com o mar a ocidente, foi o cenário escolhido pelo rei D. João V, em 1742, para a construção da mais significativa obra do período barroco – o Palácio, a Igreja, o Convento e a Cerca das Necessidades. A par destes fatores naturais, o caráter religioso presente na Ermida das Necessidades, erguida em 1613 no alto de Alcântara, e dedicada à ‘Virgem miraculosa’, foi determinante para esta localização.
O palácio domina a paisagem, pois foi construído na meia-encosta virada a sul, o que lhe garante a fachada sempre iluminada; prolonga-se na praça fronteira, a ‘Praça do Obelisco’, com tanque e obelisco no seu interior, assinalando este o 66º aniversário do rei D. João V. No terraço inferior encontra-se o Convento do Livramento. Estamos perante um interessante aglomerado urbano do absolutismo.
D. João V e a construção do Convento, Igreja, Palácio Cerca conventual
Esta era a maior cerca conventual de Lisboa, com dez hectares de área. O projeto inicial deste conjunto – edifícios e cerca – é atribuído a Custódio de Sá e Faria
A cerca é entregue em 1745, por D. João V, à Congregação do Oratório. A comunidade do convento, os frades oratorianos, era quase autossuficiente em matéria de alimentação. Confirmando a grande sabedoria do rei, foram também adquiridos terrenos calcários para fornecer pedra para os edifícios, além de terrenos com nascentes naturais para a cerca não depender unicamente do Aqueduto das Águas Livres, entretanto construído. O rei providenciou que a cerca fosse alimentada por um ramal dedicado às Necessidades, com água de novas nascentes da Falagueira e Amadora, que abasteceram a mãe-d’água no interior da cerca, o que veio a determinar a composição do jardim barroco e a aptidão agrícola dos terrenos, essencial para a subsistência dos frades.
O período barroco
No reinado de D. João V coexistiam jardins, horta dos frades e terras de semeadura mais a norte, para abastecimento do convento. O moinho, ainda existente, moía o cereal para o fabrico do pão. A relação do rés-do-chão do convento com o exterior, faz-se através dos pátios ajardinados, a norte: um jardim de buxo, com um elaborado ‘parterre de broderie’ e tanque central; este pátio retangular, com 66 x 40 metros, é envolvido por muros e nichos com a ‘estatuária das Virtudes’ na face fronteira ao convento, mas há muito retiradas do local; um segundo pátio, a um nível mais elevado, era a horta dos frades, também com um tanque central, que alimentava a rega dos canteiros de plantas medicinais, sempre presentes nos conventos.
Descia-se para a cerca – e três caminhos retilíneos divergentes do tanque circular, com catorze metros de diâmetro, marcavam a composição. Um dos eixos alinhava com uma cascata, com origem numa gruta. No topo desta existiu o observatório astronómico dos padres da Congregação do Oratório, onde mais tarde D. Carlos construiu a ‘Casa do Regalo’ – o ateliê de pintura da Rainha D. Amélia.
A parte agrícola era dominante, com os laranjais de produção e outras árvores de fruto, plantadas nos vários talhões resultantes da estrutura em tridente dos caminhos; o regadio existia mais a sul, e as terras de semeadura a norte, assim como a mata e a vinha. Sabe-se que no topo norte da cerca existiu também um campo para o ‘jogo da bola’, em que os frades se divertiam.
D. João V morre em 1750. Após a extinção das ordens religiosas, o palácio passou a ser ‘residência oficial régia’, o que veio a determinar outras composições na ‘Quinta Real’, especialmente no reinado de D. Fernando II. D. Manuel II foi o último rei a habitar as Necessidades, antes da proclamação da República em 1910. A partir daí o declínio da cerca tem sido uma constante.
D. Fernando II e a arte paisagista
D. Fernando II, de origem alemã, chega a Portugal em 1836 para casar com a rainha D. Maria II, e, fruto da sua cultura e sensibilidade artística, introduz alterações significativas na composição dos jardins, em linha com as tendências paisagistas europeias. Os pátios ajardinados mantêm o seu traçado, com toda a estatuária e demais ornamentos. Quanto à zona sul da quinta real, à época com excelente vista sobre o Tejo, foi transformada num jardim paisagista, com a eliminação dos caminhos retilíneos. Surgiram os lagos naturalizados, caminhos serpeantes entre vegetação, com muitas espécies exóticas. Construiu-se um muro com quatro metros de altura, que permitiu aplanar um extenso relvado, dando origem ao terraço superior, também ele um magnífico miradouro sobre o rio, presentemente plantado com uma fiada tripla de lódãos (Celtis australis). Para estes trabalhos o rei contou, a partir de 1841, com a colaboração do jardineiro francês Bonard.
A norte da propriedade manteve-se a mata, local de refúgio de aves e de alguns mamíferos, para deleite dos príncipes, que aqui passeavam a cavalo. A nascente do relvado existiu um picadeiro, que permitia outras práticas equestres
D. Pedro V (1837-1861) e o gosto pela botânica
As intervenções de D. Pedro V prendem-se com a construção da estufa circular, no topo poente do muro atrás referido, e do outro lado, a ‘Casa de Fresco’. Também pela mesma época ergue-se o jardim zoológico no terraço superior. Todas estas construções ainda existem, mas estão degradadas, à exceção da estufa circular. Esta permitia a aclimatação das espécies exóticas para depois serem plantadas no exterior, sendo que muitas permaneciam no seu interior, causando grande impacto nos visitantes.
D. Carlos I e D. Amélia
Os interesses do rei D. Carlos eram distintos dos de D. Pedro V, mas viveu nas Necessidades até 1908, aquando do seu assassínio, e nela fez importantes melhoramentos. É da sua lavra a construção do campo de ténis junto ao Zoo, e o ateliê de pintura da rainha D. Amélia, localizado sobre o antigo Observatório. Da cave desta construção nasce a cascata que desagua no tanque circular, centro da composição barroca do reinado de D. João V. Todos estes elementos existem, mas estão desativados, o que muito lamentamos, tal a riqueza histórica e ornamental de cada um deles. Contam a nossa história desde meados do séc. XVIII – e nós não a queremos ouvir!
D. Manuel II, o último rei das Necessidades
O rei D. Manuel II viveu nas Necessidades até à implantação da República, isto é, apenas dois anos, antes de partir para o exílio forçado. O abandono e consequente degradação instalaram-se para sempre. Será uma maldição real?
Declínio da Tapada das Necessidades
Desde muito cedo o processo de desvalorização das Necessidades foi uma constante. D. João V começa por construir o Cais da Pedra, modificando o recorte da água; a paisagem sobre o vale de Alcântara e sobre o Tejo rapidamente começam a alterar-se; os aterros nas margens do rio, o encanamento da ribeira de Alcântara, a construção da Estação de Alcântara-Terra, da Avenida de Ceuta, o desenvolvimento fabril e urbanístico no vale e nas encostas circundantes, desvirtuaram irremediavelmente a relação do palácio e dos jardins com a paisagem envolvente. Mais tarde, a ponte 25 de Abril veio ‘encaixilhar’ o que restava da vista sobre o rio Tejo.
A par do impacto exterior, temos o abandono dos jardins, tanto ao nível da vegetação como arquitetónico. O Pátio de Buxo está uma sombra do que era; a estatuária desapareceu; o bordado dos canteiros é agora um conjunto descuidado e sem nexo.
A estufa circular foi recuperada mas está vazia de plantas e encerrada; do lado oposto, a belíssima ‘Casa Fresca’ está ao abandono. No terraço superior, temos o antigo Zoo, com as construções muito degradadas. O lago circular e a cascata estão desativados, sendo que constituem o centro da composição do período barroco, idealizada por D. João V. No topo da cascata, onde D. Carlos mandou construir o ateliê de pintura para a rainha D. Amélia, a ‘Casa de Regalo’ aguarda um uso à altura da sua história.
Este passado não nos importa? O que interessa então?
Soubemos através da imprensa e das ações dos Amigos da Tapada das Necessidades, que lançaram uma petição em defesa deste património, que no antigo Zoo iria nascer um restaurante de grandes dimensões, com garagem subterrânea, e com uma concessão dilatada no tempo. Sejamos muito claros: esta Quinta Real não necessita de negócios à volta de restaurantes, mas sim de ser recuperada com inteira dignidade, para ser devolvida à população.
A importância deste jardim, que atravessa 250 anos da nossa história, devia merecer-nos respeito intelectual, até porque os movimentos de turismo cultural estão a crescer, assim como os roteiros internacionais em torno dos jardins históricos. Turismo em torno de restaurantes já temos que baste!
Há um dever dos governantes em preservar o património, mas também sabemos que para tal é necessário ter a sabedoria para os requalificar, usar e manter, devolvendo-os aos visitantes nacionais e estrangeiros, como uma obra de arte que o são, e que a todos deve orgulhar. l
elsaseverino@gmail.com
Bibliografia
1. Dicionário da História de Lisboa
Direção de Francisco Santana e Eduardo Sucena
Lisboa 1994
2. História de Portugal
Bernardo Vasconcelos e Sousa, Nuno Gonçalo Monteiro
Coordenador: Rui Ramos
A Esfera dos Livros-2010
3. O livro de Lisboa
Coordenação de Irisalva Moita
4. Necessidades – Jardins e Cerca
Coordenação : Cristina Castel-Branco
Livros Horizonte 2001