por Sofia Aureliano
Falar sobre o tema Zmar, neste momento, é tão arriscado como colocar a mão num ninho de vespas. Isto se nos preocuparmos com a probabilidade de sair picados. É muito grande. Mas a inquietação que os comentários que tenho lido nos últimos dias me tem despertado justifica que este tema se sobreponha a outros e que mereça ser abordado e tratado como mais do que um fait divers da espuma dos dias.
Porque é um retrato paradigmático de uma sociedade cada vez mais polarizada, e um exemplo especialmente adequado da apropriação indevida de temas, à partida, apolíticos, como causas fundamentalistas e ideológicas, que aumentam o fosso onde se afundam os moderados, que já pouco se fazem ouvir. Ou por falta de forças ou de vontade. Mas é preciso espicaçá-los para que gritem do fundo do poço e sublinhem que nem tudo é preto ou branco, céu ou inferno, esquerda ou direita. Há uma brisa do meio termo, do equilíbrio, da sensatez, mas que será impossível de ouvir enquanto estivermos todos aos gritos, dentro da mesma sala.
Antes de mais, faço o disclaimer: não sou imigrante a viver em condições desumanas, não sou residente da região, não sou proprietária do Zmar nem nunca lá passei férias. Sou, sim, uma apaixonada por aquela região que, há muitos anos, a escolhe reiteradamente para passar as férias grandes de verão. E que aluga sempre modestas casas de alojamento local, mais adequadas à sua carteira. Conheço o desenvolvimento económico que a comunidade imigrante trouxe para a região nos últimos anos, sei de muitos casos de famílias imigrantes que arrendam as suas casas ao ano, deixando estas de estar disponíveis para alojamento local. Tenho a certeza de que nenhum destes trabalhadores contribui para o aumento do desemprego nacional ou local, porque os portugueses não querem trabalhar nas estufas, nas condições em que os imigrantes trabalham. A comunidade local vive dividida entre gostar de ter mais residentes, porque animam a economia, e achar desconfortável que cada vez sejam mais os estrangeiros do que os portugueses, à exceção da época de verão.
Até há uns dias, era este o enquadramento que eu tinha deste “dossier Zmar”.
1. Expropriação vs. Solidariedade. Há muitos subtemas a ser discutidos ao mesmo tempo, num emaranhado confuso que dá muito jeito aos que querem lançar a confusão, mas não resolve o problema encontrando soluções. Com a requisição do governo das instalações do Zmar Eco Experience e das suas instalações, na sua totalidade, temporariamente e por razões de saúde pública, para alojar imigrantes que não vivem em condições sanitárias que se coadunem com o combate à pandemia ou a necessidade de isolamento profilático, levantou-se o primeiro tema: o governo não só requisitou casas de alojamento local como também mais de cem habitações que têm proprietários privados. Alguns deles utilizam as casas como habitações secundárias de férias, outros vivem lá em permanência. Qualquer que seja o caso, as casas pertencem-lhes e o que lhes estava a ser exigido (não proposto) é que as cedessem para responder a uma situação de saúde pública.
A insurreição de alguns proprietários fez levantar uma onda de indignados que não fez mais do que ceder à caricatura fácil e ao estereótipo: “são uns tios ricos de Lisboa que não querem ajudar os pobrezinhos, mas depois gostam de dizer que são generosos e solidários”. É tão arrogante fazer este juízo de valor como é básico deduzir que alguém, por possuir uma casa de madeira no Zmar, é rico, remediado ou pretensamente generoso ou solidário.
A solidariedade é um ato voluntário. Mas é uma característica muito própria dos portugueses. Talvez o governo tivesse sido mais bem sucedido se tivesse apelado à generosidade dos portugueses para resolver esta situação, em vez de forçar o seu envolvimento. Provavelmente o resultado seria muito parecido, e toda a gente ficava bem na fotografia. Passávamos de reino de bestas a exemplo de país bestial.
Concorde-se ou não, apenas cada um de nós sabe qual é a sua real situação financeira e as suas responsabilidades. E é tão injusto expropriar alguém de um bem, ainda que temporariamente, como retirar-lhe o emprego. Alguém se preocupou em saber se aquelas casas eram a única fonte de rendimento dos proprietários? E se aquela era a habitação permanente de algumas famílias? É suposto saírem para dar lugar a outras pessoas, por razões de saúde pública? E vão viver para onde? O Estado trata?
2. Responsabilidade. Como o próprio governo admitiu, a pandemia veio virar os holofotes para uma situação que existe há muitos anos, é do conhecimento geral mas tem sido conveniente deixá-la sossegada. Até que afetou a saúde pública e tornou-se um tema nacional.
São cerca de 20 mil os trabalhadores que há anos a comunicação social denuncia que vivem em condições desumanas, que se sabe que são trazidos por intermediários e acabam explorados nas estufas do litoral alentejano e algarvio, num cenário de quase escravatura, que dormem amontoados em casas, contentores, ou mesmo na rua. A Polícia Judiciária investiga há anos redes de tráfico de seres humanos, escravatura e auxílio à imigração, suspeitando de empresas intermediárias que recrutam trabalhadores estrangeiros, principalmente do Bangladesh, da Tailândia e do Nepal.
O tapete teve de ser levantado e o governo foi obrigado a lidar com uma situação com a qual não só foi conivente como até foi facilitador, com a moratória que perpetuou os contentores onde vivem. Os mesmos onde há quem tenha a desfaçatez de dizer que gostava de passar férias. Tivessem eles a “vista maravilhosa” do Bairro Amarelo de Almada, e haveria overbooking para a próxima época balnear!
E de quem é a responsabilidade? Do governo. Certamente, por omissão e negligência.
E de todos nós, não é? Não vimos as dezenas de notícias que demonstraram que em Portugal, num país desenvolvido, havia pessoas a viver nestas condições? Há mais de dez anos que a comunicação social mostra imagens de casas em ruínas, sem luz e água canalizada, com uma divisão onde dormem onze e doze pessoas, sem condições básicas de higiene e saneamento, que trabalham nos longos campos por onde passamos quando vamos para as praias paradisíacas do sudoeste alentejano. Nessa altura, porque não nos indignámos com este Portugal de terceiro mundo? Nessa altura, porque não nos manifestámos contra a profunda violação de direitos humanos e forçámos o governo a agir?
Porque não temos um polo oposto. E, qual marionetas de agentes cada vez mais bem preparados e engenhosos, só agimos quando somos instrumentalizados em prol de causas fabricadas à medida e imaginárias, cuja polarização é sobejamente alimentada e serve ao culto esculpido dos inimigos coletivos. Nós contra eles, sempre incapazes de nos por nos sapatos dos outros. Porque só nesses momentos conseguimos destilar o ódio que guardamos cá dentro. E podemos ir para a sala gritar, onde todos já gritam, e nunca ninguém se conseguirá ouvir.
Façamos mea culpa. Nesta história, nenhum indignado é inocente.