Mokone tinha aquela dor mesmo no meio do peito, nem muito para a direita, onde o pulmão é maior, nem muito para a esquerda, onde o pulmão é menor para poder dar espaço ao coração. Era uma dor que o transformava por completo, sobretudo se carregada a copos de bourbon. O ódio ia crescendo, golo a golo, até acabar a garrafa e abrir outra. Era sempre o mesmo ódio. Stephen Madi Mokone odiava a mulher, Joyce Maaga Mokone. Ou talvez não fosse bem assim. No fundo, o que sentia por ela até podia ser simples de explicar. O diacho é que entre o explicar e o sentir vai uma distância tão grande que dá para meter no meio toda a literatura universal. Por isso, Stephen odiava Joyce e amava-a ao mesmo tempo. O que não podia ser. Nem o whisky deixava que fosse.
O Superior Court of Middlesex County New Jersey não conseguiu fazer com que Mokone percebesse que de tanto querer Joyce não podia entrar-lhe pela casa durante a madrugada e dar-lhe murros e pontapés como se estivesse num ringue de wrestling. A cabeça de Stephen estava já demasiado confusa para que ele fosse capaz de entender fosse o que fosse em relação a Joyce Maaga Mokone e a toda a elegância da sua pele de ébano de uma mulher segura dos seus 34 anos. No meio de toda essa confusão, Mokone mergulhava o mais fundo que podia nos sentimentos que era incapaz de explicar e ficava lá em baixo, sozinho, deitado no chão da garrafa vazia.
O juiz do Superior Court of Middlesex County New Jersey não quis nem saber do que Stephen procurava ir dizendo através da sua voz rouca e entaramelada. A sua simpatia virava-se, compreensivelmente, para a mulher que fora esmurrada com violência e ficara com os olhos inchados como os de um peixe-balão. A sentença ficou a balançar entre os 8 e os 12 anos de encarceramento na New Jersey State Prison. Era dia 31 de outubro de 1978. Enclausurado, Mokone dividiu o seu ódio pela ex-mulher e pela advogada que a representara durante o processo, Ann Boylan Rogers. Havia, claro, aquela diferença: o bicho dentro de Stephen continuava a amar Joyce apesar do ódio. Para Ann sobrava apenas ódio. Um ódio que crescia dia a dia numa escala geométrica.
Ann Boylan Rogers foi uma senhora muito bonita até ao dia 8 de outubro de 1977. Estava a sair de sua casa, em Manhattan, quando um homem passou à sua frente e lhe atirou com ácido sulfúrico para a cara. Quando entrou na sala do hospital, a pele borbulhava-lhe como se estivesse numa frigideira de óleo a ferver. As marcas ficaram-lhe para toda a vida. Nunca ninguém apanhou o bandalho que a desfigurou mas o Superior Court of Middlesex County New Jersey também não teve dúvidas nesse caso: o autor moral do crime chamava-se Stephen Madi Mokone, nascera em Doornfontein, um subúrbio de Joanesburgo, na África do Sul, e tinha a alcunha de Kalamazoo. Assim, como uma espécie de aviso que não foi ouvido a tempo. Kalamazoo quer dizer A Água que Ferve.
Até os canalhas irreversíveis tiveram infância. O Nelson Rodrigues estava convencido de que o próprio Vampiro de Dusseldorf teve um dia um gesto de carinho e passou a mão suavemente pelos cabelos de uma criança ainda que lhe tenha, em seguida, chupado as carótidas. Kalamazoo corria como uma lebre nos jogos de futebol nas ruas de Sophiatown, para onde a família se mudou quando era adolescente. Os treinadores que andavam pelos bairros pobres à caça de garotos de pé descalço com jeito para a bola não tardaram a prestar atenção em Mokone. Aos 16 anos já tinha sido chamado para jogar numa seleção de Joanesburgo. Uma seleção só de miúdos negros, claro.
Em 1955, Stephen Madi Mokone assinou um contrato profissional com o Coventry City, de Inglaterra, e passou a ser o primeiro sul africano de cor a jogar numa equipa da Europa. O sangue que fervia como água nas veias de Kalamazoo levaram-no longe e alto. Cada vez mais alto. Em 1959, saiu do Cardiff City, onde esteve um ano, e foi para o Barcelona. Diacho! Não havia um único garoto em Doorfontein que acreditasse numa coisa assim. Como é que um fedelho farrusco lá das vielas sujas de Joanesburgo ia jogar no Barcelona?! Não jogou. Havia estrangeiros a mais na equipa. Foi emprestado ao Marselha, depois passou pelo Torino e pelo Valência antes de emigrar para o Estados Unidos e jogar no Hamilton Steelers.
Nesse tempo, já Stephen e o bourbon eram amigos íntimos. Se Joyce lhe fizera ferver o sangue desde o primeiro minuto em que a viu, o whisky mantinha-o à temperatura ideal para aguentar a fervura. Tudo fervera e continuava a ferver na vida de Kalamazoo. Os muros altos da New Jersey State Prison deixavam-no ver uma nesga de céu e pouco mais. O ódio ficava no meio do peito misturado com amor.