por Elsa Severino
SÁBADO, 15 de maio. Um extenso e brilhante relvado acolhe uma pequena multidão de todas as idades na Tapada das Necessidades. As clareiras, aplanadas, servem para isso mesmo: para a prática de um recreio livre, despreocupado, para apanhar sol e merendar, como bem nos ensinava Gonçalo Ribeiro Telles. Neste sábado, porém, esta concha relvada foi o local escolhido pelos ‘Amigos da Tapada das Necessidades’ para debater a construção de um grande restaurante neste jardim histórico, destruindo parte do seu património construído e arbóreo, hipotecando irremediavelmente o genius loci deste jardim.
A Câmara de Lisboa, que tutela a Tapada por protocolo com o Estado em 2008, postula que a construção de um grande restaurante, destruindo o antigo Zoo e os seus icónicos pavilhões, do tempo de D. Pedro V, será a tábua de salvação para a revitalização deste património. Trata-se de uma ideia assaz bizarra. Não o restaurante mas a sua localização, as suas dimensões faraónicas, com caves inclusive, e a apropriação descarada de um bem público para fins privados, num completo atropelo à salvaguarda dos jardins históricos.
Um jardim não se recupera ou dinamiza com restaurantes; recupera-se passo a passo, nos seus vários elementos: com especial atenção às árvores, aos arbustos, aos tanques e todo o sistema de águas, aos pavimentos, às estufas… E o milagre acontecerá ao fim de um longo processo a cerzir este sistema natural, diverso e biodiverso, mas interdependente!
O jardim está abandonado há décadas, sendo que o seu declínio teve início com a saída da família real; D. Manuel II, sendo o último rei de Portugal, foi também o último inquilino das Necessidades.
O Ministério dos Negócios Estrangeiros instalou-se ali em 1916, mas este facto não tem sido o garante da preservação do jardim, tal como a Fundação Jorge Sampaio, que tem a sua sede na antiga Casa do Regalo, antigo ateliê de pintura da rainha D. Amélia.
Do que falamos, quando abordamos este jardim histórico?
1742 – D. João V inicia a construção do Convento, Igreja, Palácio e Cerca conventual das Necessidades. Do seu tempo, além do palácio e igreja, restam os pátios ajardinados adjacentes ao palácio: o pátio murado e a horta dos frades. Ambos abandonados, o primeiro sem a Estatuária das Virtudes e o busto de D. João V, que adornava o pátio de parterre de broderie – canteiros com um sublime rendilhado de plantas e inertes. Hoje em dia está desprovido de qualquer sentido estético e florístico, pois foi completamente adulterado em todos os domínios.
O centro da composição barroca, o tanque circular com 14m de diâmetro, está vazio, assim como a cascata, a norte, que descia da Casa do Regalo. É urgente a reposição deste circuito de água, para fazer jus à história do jardim, caso contrário percorremos um ‘jardim fantasma’.
1843 – D. Fernando II e o jardineiro francês Jean Bonnard redesenham os jardins num estilo paisagista, com inúmeras espécies exóticas, lagos naturalizados e caminhos serpenteando no vale. Desta época é a construção do muro com 4m de altura, que permitiu o aplanamento do relvado que hoje em dia desfrutamos, assim como a construção do Zoo, no terraço superior. Este local com aves e mamíferos despertou o interesse pelo mundo natural, surgindo mais tarde o Jardim Zoológico de Lisboa. É aqui que se pretende construir o polémico restaurante com uma concessão muito vantajosa para o promotor e desqualificadora para o jardim.
1837-1861 – D. Pedro V, filho de D. Fernando II, herdou do pai o gosto pela botânica, o que o leva a construir a Estufa Circular (1856), e a Casa de Fresco do lado oposto do muro de suporte; ambas com o intuito de aclimatar e expor plantas exóticas, muito ao gosto da época. Estruturas magníficas, abandonadas, sem as funções para as quais foram pensadas.
1908 – D. Carlos é assassinado, mas viveu nas Necessidades até à sua trágica morte; é da sua lavra a Casa do Regalo (1889) e o primeiro campo de ténis em Portugal. A Casa do Regalo é presentemente o gabinete do ex-Presidente da República Jorge Sampaio.
1910 – D. Manuel II sai para o exílio aquando da implantação da República e após o bombardeamento do palácio pelo cruzador Adamastor. O declínio da Tapada instala-se lenta e progressivamente.
2021 – Sabemos do abandono deste jardim único na sua história, como sumariamente descrevemos, e na letargia dos nossos dias fomos esquecendo este e outros atentados ao património – até que os ‘Amigos da Tapada das Necessidades’ nos alertaram para a construção de um grande restaurante no antigo Zoo, da época de D. Fernando II, como vimos. E este facto acordou-nos para a fragilidade dos jardins, e para a permissividade do sistema político relativamente a processos especulativos, pois é disto que se trata.
Na verdade, esta relíquia é muito apetecível para negócios, pois haverá melhor enquadramento para um restaurante com esplanadas, espetáculos, casamentos e batizados, do que uma cerca conventual do séc. XVIII?
Em 1981, o Comité de Jardins e Sítios Históricos aprovou a Carta de Florença, com as normas sobre a intervenção em jardins históricos e sobre «ações de natureza imaterial necessárias à sua protecção, conservação e valorização». Os jardins históricos perpetuam a nossa relação com a natureza e contribuem para a nossa identidade cultural, lê-se também.
A Carta (de Florença) extraviou-se em Portugal?