Não é novidade para ninguém que a crítica é uma constante entre nós. Protestar, reclamar, dizer mal por tudo e por nada (quantas vezes sem fundamento) são coisas a que nos fomos habituando e fazem parte do nosso quotidiano. Há alguns anos, foi até criado por determinação superior o chamado Livro de Reclamações, que, podendo ter sido lançado com pedagógicas intenções, não deixa de ser também um convite declarado à contestação e ao protesto. Com este estado de espírito, pouca importância damos àquilo que funciona bem, nem reconhecemos o devido valor às coisas boas que a vida nos vai proporcionando.
O caso que hoje venho partilhar é um exemplo disso. Tem que ver com os cuidados paliativos, área que considero essencial na medicina, também ela muito criticada.
Todos reconhecemos que os cuidados prestados a esse nível ficam muito aquém do necessário – e é a essas limitações que se agarram ferozmente os defensores das teorias que visam acabar com a vida.
Para alguns, os cuidados paliativos é como se não existissem – e os que existem não têm qualquer expressão. Contudo, em abono da verdade, importa desmistificar a questão: os cuidados paliativos existem, embora seja preciso investir mais neste tipo de atividade. Convém ter presente que um doente a precisar destes cuidados é um ser humano, está vivo e tem direito a ser tratado com dignidade, carinho e dedicação. Ouvi um dia dizer que os cuidados paliativos são como que um ‘sinal de vida’ – e o testemunho que apresento fala por si.
José Luís foi um utente da minha lista, que acompanhei durante anos na unidade de saúde onde trabalho. Ainda me lembro da sua mãe, também ela minha doente, que recordo com saudade. Alegre, otimista, bom conversador, fiel seguidor das orientações clínicas recomendadas, foi mais tarde atingido por uma grave doença oncológica, que viria a condicionar a sua vida aos 69 anos.
Referenciado para os cuidados hospitalares, José Luís só esporadicamente aparecia na minha consulta – e, quando o fazia, era para me dar conhecimento do evoluir da sua situação clínica. Sem perder o otimismo e sempre com um sorriso nos lábios, dizia com um certo humor: «Então eu, que sou engenheiro, só lido com médicos!». A doença ia progredindo e eu, consciente do desfecho que se adivinhava, preparava-me para ter de enfrentar mais essa dura realidade. Entretanto, a sua mulher, Leonor, conseguira a integração do marido na Rede de Cuidados Paliativos, que funcionou em pleno. «Ainda dizem mal do SNS…», contava-me ela com orgulho e satisfação. E continuava: «Era mais fácil mandá-lo para um lar, mas eu não quis. É uma nova cultura. É muito importante as pessoas não se sentirem descartáveis».
Nos últimos seis meses, Leonor recebeu formação dos profissionais e aprendeu também a tratar do marido, que ia recebendo a visita da equipa diariamente; e, no fim, mais do que uma vez por dia, incluindo aos fins de semana. «É preciso ter resistência psicológica», reconhecia ela, fazendo questão de tecer os maiores elogios a toda a equipa que se deslocava ao seu domicílio e de sublinhar a importância da família, incluindo os netos, que acompanharam toda a doença do avô. Chegada a sua hora, José Luís deixou-nos aos 73 anos, rodeado do carinho dos familiares, da sua Leonor, companheira inseparável, e dos cuidados médicos e de enfermagem de que precisava.
Este caso é a prova real de que os cuidados paliativos e de enfermagem existem e funcionam. Estamos em Portugal e foi o nosso Serviço Nacional de Saúde que geriu (e bem) toda a situação. Agora é fundamental continuar a apostar nesta área, tão importante como essencial na sociedade.
O que temos pode ainda ser pouco, mas já é alguma coisa. E compete-nos enaltecê-lo e elogiá-lo. Estamos no começo, é certo, mas é uma luz de esperança que aparece no fundo do túnel. Um sinal de vida!
(À memória do Eng. José Luís Pádua Silva)