O rio Aire pode ser o mais caudaloso da região do Yorkshire, mas quem olha o seu movimento manso em direção ao mar não seria capaz de adivinhar os segredos que guarda de todos os seus afogados. Volta e meia, surge nas páginas dos jornais e as notícias trazem consigo a morte. Como aconteceu no dia 4 de maio de 1969. Uns tipos que estavam à pesca num bote, talvez os mesmos das páginas de Jerome K. Jerome em Three Men on a Boat (To Say Nothing of the Dog), estranharam o volume negro que boiava um pouco mais adiante. Aproximaram-se, mas a visão foi desagradável. Um indivíduo negro e volumoso, vestido com um fato coçado, já bastante inchado pelos efeitos da água, não deixava dúvidas de que se encontrava irreversivelmente morto.
Os pescadores, que se encontravam numa zona entre Knostrop Weir e a Skelton Grange Power Station, procuraram puxar o cadáver para bordo, mas era demasiado pesado e optaram por desistir do intento sob o risco de passarem a ser ‘Three Men Without a Boat’._Os polícias que ocorreram para registar o incidente não lhe deram grande importância. Eram dois daqueles imbecis cuja farda é mais importante do que o que lhes vai na alma e chamavam-se, respetivamente, Geoffrey Ellerker (inspetor) e Kenneth Kitching (sargento).
De início, não se veio a saber se o corpo encontrado a boiar no Aire tinha ido lá por vontade do seu proprietário ou por ação alheia. No entanto, o inspetor e o sargento não tiveram dúvidas em registar o caso como suicídio. E arquivando alegremente os dados que tinham em mãos, foram à procura de um pub onde pudessem esvaziar umas pints de pale ale ligeiramente tépida.
Foi com indisfarçável aborrecimento que, no dia seguinte, surgiu uma testemunha que afirmou convictamente que vira dois fulanos fardados perseguindo um negro ao longo das margens do rio. O negro correspondia por inteiro à descrição do cadáver e o cadáver tinha nome: David Oluwale, natural de Lagos, na Nigéria, onde nascera em 1930. O caso deu brado e saiu da gaveta onde estava arquivado. A imprensa atirou-se a tudo o que mexia com um ferocidade de hienas e a direção da Scotland Yard não teve outro remédio senão abrir uma inspeção aos acontecimentos.
Durante a sua juventude, em Lagos, Oluwale sonhara em ser jogador de futebol. Quando partiu em direção a Inglaterra, já havia quem sussurrasse, aqui e ali, o nome de Albert Louis Johanneson, um miúdo sul-africano que viria a ser a primeira pérola negra do grande Leeds United. Por mais que se tenha esforçado, ninguém levou Oluvale a sério. Era entroncado, rápido, mas com pés que pareciam ter a consistência de tijolos. Não. Não arranjou sequer um clube que ficasse com ele, nem que fosse à experiência. Obrigado a seguir outra carreira, empregou-se na construção civil. Parece que tinha um jeito particular para acartar com baldes de cimento.
Em novembro de 1971, o inspetor Geoffrey Ellerker já não era inspetor e enfiara-se autenticamente numa camisa de onze varas. Encobrira o bárbaro assassinato de uma mulher de 69 anos que estava entregue à sua custódia numa esquadra de Leeds. Encarcerado, começou, como é costume da idiossincrasia dos grandes cobardes, a cantar como um passarinho. Não tardou a receber a visita do seu velho compincha Kenneth Kitching.
O ‘Caso Oluwale’ tornara-se num romance de cordel tão cheio de pormenores como o de Pimpinela Escarlate, da Baronesa Orczy. A pouco e pouco, Geoffrey e Kenneth confessaram o infame racismo que cultivavam no dia-a-dia, sobretudo quando estavam devidamente fardados.
David Oluwale, o rapaz que demandara Inglaterra para jogar futebol, ganhara o estatuto pouco agradável de sem-abrigo. O comando da polícia de Leeds levava a mal que um homem não tivesse um lugar para viver, fosse qual fosse a sua situação financeira. O assunto de Oluwale tinha de ser resolvido rapidamente. Na sentença final proferida pelo juiz que condenou Ellerker a três anos de prisão efetiva, sublinhou na sua decisão: «The physical and psychological destruction of a homeless, black man whose brutal, systematic harassment was orchestrated by the Leeds city police force».
Oluwale não era nenhuma flor que se cheirasse. Na Nigéria estivera atrás das grades várias vezes, por pequenos furtos e desacatos na rua. Mas, convenhamos, não era motivo para que a polícia de Leeds, cada vez com mais fama de racismo, lhe movesse uma perseguição sem tréguas, reduzindo-o a frequentes reclusões durante as quais era brutalmente espancado e insultado sem meios termos. Os relatórios assinalavam que o inspetor e o sargento invadiram a barraca do infeliz, infringiram-lhe golpes de cassetete até o obrigarem a fugir à toa pelas margens do Aire. Oluwale não sabia nadar e a noite estava negra como breu. Quando o Sol derreteu o nevoeiro, os três homens no bote tinham chegado tarde demais.
afonso.melo@newsplex.pt