Noite. A caminho do antigamente

Na última semana de maio, há quem diga que o Bairro já tem tanta gente ‘como em julho do ano passado’. As regras cumprem-se mas só por alguns porque assim que chega às 22h30, dança-se no Miradouro.

Os filhos da mãe deste bar estão mesmo a cumprir as regras», ouve-se à porta de um estabelecimento no Bairro Alto que por volta das 22h15 começa a pedir aos clientes para pagar pois têm de fechar.

É quinta-feira e, de acordo com os moradores, «a maior confusão é amanhã e depois». As palavras são de Conceição Leandres, que mora no Bairro há 49 anos e este ano viu o problema do barulho piorar. «Nos outros anos não havia mesas e cadeiras e por isso agora ficam aqui até à 1h a fazer barulho», queixa-se a bairrista. 

Conceição tem 74 anos e vive num rés-do-chão entre bares e restaurantes. A sala, virada para a Rua do Diário de Notícias, tem a televisão sempre com o volume alto de modo a «não ouvir o barulho que vem lá de fora». A septuagenária conta ao Nascer do SOL que recentemente lhe «bateram na janela de madrugada e perguntaram se era horas para estar a ver televisão». Conceição não respondeu, como confessa que faz sempre, desde que que não lhe faltem ao respeito.

A pandemia trouxe aos moradores desta famosa zona de diversão noturna algum descanso que, apesar de ter deixado saudades do que antes era o Bairro Alto, foi apreciado.

Dulce Albuquerque é, de acordo com a própria, «muito famosa». Vemo-la à janela do número 36 da Rua do Norte com Joaninha, com a sua gata que enverga um chapéu na cabeça. Dulce era costureira «de calças de homem» mas agora tem mais de 300 fatos feitos para os quais pede «um museu no Bairro».

Em frente à casa onde mora há mais de 40 anos está a garrafeira e bar Baco Alto, que pertence atualmente ao seu filho António José – ou Tozé, como diz a própria. Entramos no bar pouco depois das 18h e Tozé ainda está a preparar tudo para a noite que se avizinha. Tinha chegado apenas há cinco minutos e apanhou-nos a conversar com a mãe.

«Costumava abrir o bar mais cedo, mas não se justifica», afirma o proprietário. A junta de freguesia permitiu que fossem colocadas três mesas no exterior, no entanto, Tozé opta por colocar apenas duas. «Sei que não se deve dizer isto mas há muitos colegas a quem a junta permite três mesas e eles metem seis», admite. 

Naquela zona, ainda à entrada do Bairro Alto, «não costuma haver muita confusão, isso é mais lá para cima», conta, «mas a Polícia sabe quem é que tem por hábito transgredir as regras e está mais atenta a esses sítios».
Mais lá para cima mas ainda na mesma rua está Vítor, atento às notícias que passam na televisão do restaurante Sabor do Bairro, onde trabalha. 

Ainda não são 19 horas e, por isso, as mesas ainda estão vazias. «As pessoas começam a chegar por volta das 19h30», explica-nos, «e depois, mesmo quando acabam de comer, deixam uma porção de bebida e ficam sentadas a beber até fecharmos».

Relativamente ao movimento, Vítor acredita que há mais gente «do que, por exemplo, em julho do ano passado», mas mesmo assim, ainda só serve «cerca de 30 refeições por dia», menos de metade do que faria numa altura normal.

As vozes que se ouvem são tanto de portugueses como de estrangeiros, se bem que as dos nacionais estão, em grande parte – a esta hora do dia –, abafadas pela máscara, contrariamente aquilo que acontece com os turistas. 
Rosie e Tom vieram de Inglaterra esta semana para passar quatro dias em Portugal. Encontramo-los a beber um gin antes de seguirem para o restaurante onde têm jantar marcado. Escolheram Portugal porque «é dos poucos países em que não é necessário fazer quarentena» quando voltarem para Londres. O casal sente-se seguro a passear pelas ruas de Lisboa, especialmente devido ao facto de «toda a gente usar máscara, até na rua», algo que não acontece no seu país de origem.

Rosie conta que em Inglaterra «só é obrigatório usar máscara em locais fechados» e, por isso, admite a possibilidade de os estrangeiros que vêm a terras lusas também não usarem máscara, «porque não estão habituados». 

De acordo com os proprietários de vários bares e restaurantes a percentagem de cidadãos portugueses para a de estrangeiros no Bairro Alto, situa-se à volta dos 60%/40%, com maioria nacional. 

Por volta das 21h, já há «segurança» à porta do Esteves Bar. Nuno Rodrigues e a mulher acolhem vários estudantes de Erasmus que ali se juntam por «ser um bar tipicamente português, sem luzes néon», diz Nuno, que está ao balcão a servir bebidas. O espaço é pequeno, abrindo lugar apenas para dois grupos de cinco ou seis pessoas cada um. «O bairro, de semana para semana, tem mais gente», explica ao Nascer do SOL, fazendo assim com que exista a necessidade de controlar as entradas. «A minha mulher fica à porta e só deixa entrar alguém, quando outra pessoa sair», afirma o bartender.

A partir das 22h30, hora obrigatória do fecho dos bares, «a confusão instala-se lá fora e a maioria das pessoas junta-se no Miradouro de São Pedro de Alcântara», conta Nuno. Mas pelas 22h, as ruas já começam a ganhar um movimento que até antes não tinham. 

No FBA – Friends Bairro Alto – as mesas dispõem-se ao longo da Travessa da Água da Flor. De acordo com Mara, que trabalha no estabelecimento, «não há uma única mesa que não tenha uma pessoa estrangeira». 

Mas nem isso salva o que em tempos foi um bar em que, a uma sexta-feira à noite, era praticamente impossível alguém se movimentar sem ficar colado ao corpo de outra pessoa. Esta quinta-feira, os clientes encontravam-se apenas no exterior, não porque eram essas as regras, mas sim porque não eram suficientes para que as mesas no exterior – as mais frequentemente escolhidas – estivessem cheias ao ponto de a única opção ser o interior. 

Os clientes que entram e saem fazem apenas pequenas deslocações para ir à casa de banho ou pedir alguma bebida ao bar e «são obrigados a usar sempre máscara, nem que só se desloquem dois metros», afirma Mara.

Nas janelas surgem cabeças curiosas, e por vezes preocupadas, com o barulho que se faz e com a propagação da pandemia. «Há umas semanas esteve aí um miúdo que teve de ir embora de ambulância, ou porque bebeu de mais ou não sei… E depois estão todos juntos, partilham copos…», conta ao Nascer do SOL uma moradora do Bairro Alto, cuja casa se situa exatamente por cima do FBA.

Apesar de todos os jovens que se juntam nos bares, ainda que com as devidas regras de distanciamento, o maior número de pessoas concentra-se nas ruas, especialmente na Rua da Atalaia – a mais a norte do Bairro Alto – com copos na mão e sem qualquer tipo de mecanismo que impeça a propagação do vírus. 

Se o Bairro Alto sempre foi um local de convivência e cujas ruas se tornam de difícil circulação a partir das 22h, esta quinta-feira não havia nada que indicasse que o cenário fosse diferente.

Era impossível atravessarmos a rua sem que tivéssemos de pedir licença, essa que não seria respeitada ou sequer ouvida por aqueles cujo álcool no sangue fazia aumentar os decibéis da voz. Apesar de a 3.ª esquadra se localizar poucas ruas abaixo, os agentes só viriam a fazer algo quando a hora de encerramento já tinha sido ultrapassada.

Ainda antes disso, encontramos Hugo, «a caminho dos 21 anos», com dois amigos. O jovem diz ao Nascer do SOL que «como é óbvio, já ninguém aguenta estar em casa, isso faz mal à cabeça» e que, por isso mesmo, sente que «nada pode fechar novamente».

Hugo e os amigos conversam, interrompendo o que dizem com os golos de bebida que vão bebendo. Um deles admite que não gosta de usar máscara e por isso, só o faz «em locais fechados». 

A maioria daqueles que se encontram no Bairro fazem o mesmo. Em alguns casos as máscaras estão presentes, mas no queixo ou presas nos pulsos. 

Às 22h30 chegam dois agentes da PSP à Rua da Atalaia, com o objetivo de fazer dispersar as centenas de pessoas que ali se encontram. A chegada da autoridade, contrariamente ao que se podia prever, não fez acalmar os ânimos.

Os gritos e os cânticos tornam-se mais altos e alastram a quase todos aqueles que permanecem naquela Rua. 

Aqueles que optam por sair, têm dois locais de preferência para onde seguir: o Miradouro de São Pedro de Alcântara e a Praça Luís de Camões. Os que optam pelo primeiro deparam-se com centenas de outros jovens já no espaço escolhido. Desta vez com colunas a relembrar os tempos em que as discotecas estavam abertas e nelas se podia dançar à vontade, sem máscara nem distanciamento. Quem lá está não parece ter medo de qualquer que seja o vírus ou sequer lembrar-se que existe um que ainda mata milhares de pessoas por dia.

Há quem aproveite para fazer negócio no meio das regras que ficam por cumprir. Desde cervejas frescas a um euro até aos maços de tabaco, passando pelas já tradicionais orelhas que reluzem. 

Um carro com dois agentes da Polícia chega ao Miradouro pouco antes das 23h00. No local está o chefe Carlos Mena que conta ao Nascer do SOL que «estão a vir reforços». Durante cerca de 10 minutos, eram apenas dois os agentes que se encontravam no local, não tendo por isso tomado nenhuma ação.

«Temos de agir com calma, não vale a pena forçarmos as pessoas a sair porque assim vai ser pior», afirma o chefe, no momento em que chega a carrinha do Corpo de Intervenção.

Os agentes passam de apenas dois para cerca de uma dezena. Nesta altura, aproximam-se da multidão e afirmam que «é hora de ir para casa». Mesmo os que inicialmente oferecem alguma resistência, acabam por seguir caminho.
No entanto, apesar de a multidão já não se concentrar no Miradouro de São Pedro de Alcântara, segue junta em direção à Praça Luís de Camões. Ainda poucos metros se fizeram até os agentes serem obrigados a empurrar alguns dos cidadãos que desafiam a autoridade.

Quando parece que as coisas estão mais calmas, a população insiste em fazer uma paragem no Largo da Misericórdia. Aí, a festa continua, ainda que por poucos minutos. Nesta altura, ouvem-se barulhos que se assemelham a fogo de artifício. A força policial pede às motas que sobem a Rua da Misericórdia a alta velocidade para que encostem, no entanto, apenas uma acede ao pedido. Os restantes condutores acabam por fazer inversão de marcha e escapar. 

«Esta semana fomos chamados todos os dias, a situação repete-se constantemente», conta uma das agentes que trabalha naquela noite. 

Para onde foram as centenas de pessoas que se juntaram naquele Miradouro, é uma questão à qual a resposta fica por dar. Assim que se chega à Praça Luís de Camões os caminhos dispersam. Uns seguem em direção à Baixa-Chiado, outros descem para o Cais do Sodré.

Apesar de a noite lisboeta não ser aquela a que muitos já se habituaram, a verdade é que para lá caminha. A música, a dança e a liberdade de movimentos continua presente, e apenas as máscaras ao queixo e a presença da autoridade nos fazem suspeitar de que não estamos em «tempos normais».