por João Campos Rodrigues, na Guiné-Bissau
Escondido na ponta das Bijagós, entre mangais sem fim, florestas de cajueiro e praias maravilhosas, encontramos uma cidade planeada com cuidado, à beira do golfo da Guiné, onde cabras, porcos e galinhas passeiam por edifícios majestosos, que se arruínam lentamente.
Ao chegar a Bolama, a uns quarenta quilómetros de Bissau, seja de piroga ou lancha, é natural que sinta uma certa sensação de estranheza, mas também de estar em casa. Nesta ilha que foi capital colonial, nos tempos do império português, a língua tem um sabor familiar, a arquitetura também, e aqui ainda reina a Super Bock, Sagres e Cristal. No entanto, o caminho não é fácil, tem de se esperar pela maré alta para atravessar os baixios e bancos de areia do mar da Guiné. Hoje, com sorte, encontra um piloto com GPS, mas antigamente a travessia era mesmo a olho, usando como referência as mais de 80 ilhas do arquipélago, apenas umas dezenas das quais são habitadas.
Ainda antes de se chegar já se adivinha um mundo diferente. Talvez veja enormes nuvens de fumo ao longe, a pairar sobre as florestas da ilha, mas não se preocupe. Aqui a subsistência de muitos ainda depende da agricultura de queimada, usando as cinzas como fertilizante, sobretudo para culturas de um arroz, a que chamam npampam. Outros plantam arroz mesmo nos mangais, limpando raízes ou construindo diques entre água salgada ou bolanha. É uma técnica exigente, aplicada sobretudo pela etnia balanta, que requer trabalho duro e enfrenta ameaças sérias. Não só há cada vez menos jovens nas tabancas, ou aldeias, tendo partido para os centros urbanos ou para engrossar a grande diáspora guineense, como os próprios mangais estão a desaparecer, engolidos pela subida do mar, devido às alterações climáticas. E se a água do Golfo da Guiné é tão rica em peixe, um dos grandes sustentos da região, é muito devido aos mangais, onde estes vão desovar.
Bolama, considerada reserva de biosfera pela UNESCO, é de facto um paraíso ameaçado. Mas não seria possível adivinhá-lo pela calma das gentes daqui, o seu entusiasmo, a confiança de que a sua cidade é um gigante desmaiado, pronto a levantar-se para reviver antigas glórias.
Mal pisamos o cais, é difícil não lembrar todos os povos que por aqui passaram. Desde os tempos em que britânicos quiseram fazer da ilha uma colónia modelo, no séc. XVIII, face a feroz resistência dos bijagós e negociando com régulos – ou líderes tradicionais – biafadas, ao momento em que os portugueses lá se estabeleceram, para reforçar as suas escassas possessões na Guiné. Nesses tempos de corrida a África, o caso quase gerou uma guerra entre os dois impérios, a chamada questão de Bolama, entre 1834 e 1870, que acabaria por ser arbitrada pelo Presidente americano Ulysses S. Grant, que colocou a ilha nas mãos dos portugueses.
Nesse cais tão disputado, olhando para a esquerda, sabemos que, anos depois, seria desenvolvido um aeroporto marítimo, paragem quase obrigatória para os hidroaviões que então cruzavam o Atlântico, inspirados por Gago Coutinho e Sacadura Cabral. E em 1931, nos tempos de Mussolini, uma dessas aeronaves, que tentava chegar ao Rio de Janeiro, caiu ao largo da cidade, matando cinco aviadores italianos, que ainda são recordados por um monumento à entrada de Bolama, num raro monumento a fascistas.
Contudo, para as gentes de Bolama, o monumento é hoje sobretudo um ponto de encontro, uma recordação de tempos mais movimentados. Nas últimas décadas, a cidade tornou-se um fantasma de si mesma, uma antiga capital que hoje tem menos de cinco mil habitantes.
Passando pelas casas, ainda se ouvem ritmos acelerados e música africana, com gente a conviver à porta, a comer e beber sombra, à boa moda guineense. É uma cidade onde se pergunta a estranhos que pedem direções se são servidos, ou se «vai uma fresquinha», e o mais complicado é dizer que não. Mas também onde se vêm telhas amontoadas em quintais, num país onde os materiais de construção são uma comodidade rara. Trocam-nas por chapa de zinco, mais leve e barata, não porque estejam estragadas. É que as velhas fundações de muitas casas de Bolama estão rachadas, a ceder, já não aguentam sequer o peso das telhas, estão a afundar tão lentamente quanto a cidade.
Canções entre ruínas
Subindo as ruas poeirentas de Bolama, passando o velho e arruinado palácio do governador, onde hoje se seca roupa e cria animais, chegamos ao coração da cidade, que bate como uma martelada nas expectativas do viajante incauto. Ali, na hoje chamada Avenida Amílcar Cabral, deparamo-nos com os Paços do Concelho de Bolama (ver foto 1), um edifício clássico, digno de qualquer capital, mas deixado a morrer de abandono, com os jagodins – ou abutre de capuz, uma espécie comum na região – a cirandar.
Foi aí que nos encontramos com Ernesto Dabo, músico e poeta histórico guineense, de 72 anos, membro fundador da Cobiana Djazz – considerada a primeira banda moderna guineense, rainha do Gumbé, um estilo que funde influências criolas e africanas – e autor da canção M’Ba Bolama, um dos maiores sucessos musicais na Guiné-Bissau, sobre a sua terra natal.
«Dói, dói ver isto, porque gostaríamos que a cidade mantivesse o mesmo lustre, a mesma dinâmica», admite Dabo, olhando em redor, com um certo desgosto. Aponta para um monte de destroços, cascalho e vigas de aço dobradas. «Isto foi a sede da delegação do Banco Nacional Ultramarino, quando Bolama era capital da colónia», recorda. Tratava-se do BNU, hoje subsidiário da Caixa-Geral de Depósitos, que à época era responsável pela moeda das colónias, usada em Angola, Cabo Verde, Guiné, Macau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor, e diferente dos réis ou escudos que circulavam na metrópole.
«Depois transferiram a delegação para Bissau, em 1941. Isto é dos primeiros momentos em que começa a erosão de Bolama, naturalmente que uma série de serviços, e outros fatores que faziam a cidade viver, começaram a mudar-se para Bissau», explica Dabo. «Isto passou a ser um hotel, chamavam-lhe Hotel Turismo. Não sei quantas estrelas teria hoje, mas para aquela altura era um hotel de cinco estrelas, uma coisa muito luxuosa. E hoje está como está», conta o músico, que cresceu umas ruas abaixo. «Era o lugar do jet-set bolamense», diz, entre risos. «Havia alguns guineenses misturados com alguns colonos, que estavam ligados à administração, ao comércio, e que vinham para aqui fazer a sua vida social».
São memórias com um travo agridoce. «Ninguém gosta de perder o que tinha de bom. E não digo bom no aspeto político ou social, claro. Estou a falar na estrutura urbana que havia aqui, que desapareceu podia ser muito útil agora», desabafa. Ainda que algumas coisas se mantenham, nem que seja no próprio desenho da cidade, com ruas que descaírem para o mar, para enfrentar a dura época das chuvas guineenses, quando se alterna entre um calor sufocante e chuvas tropicais continuas, por vezes durante dias seguidos.
«Aqui, aconteceu o que aconteceu no geral, houve uma incapacidade de manter as coisas, porque não haviam recursos humanos preparados para isso, nem recursos financeiros e logísticos», explica Dabo. «Proclamar a independência não significa herdar um Estado, longe disso. É preciso assumir a construção de um Estado e essa construção tem como capital fundamental o capital intelectual. E nós estávamos despidos disso».
«Nós entramos no período independência com mais de 99% da população guineense analfabeta. E mesmo quem era alfabetizado era apenas minimamente», salienta Dabo. «Durante quase 500 anos de presença colonial, só foram formados 14 guineenses a nível superior, 11 a nível médio, 32 a nível profissional». É que, nos tempos coloniais, a opção era praticamente só instruir cabo-verdianos, como uma espécie de gestores do império. Daí que muitos dos dirigentes que conquistaram a independência, mesmo na Guiné, fossem dessa origem, como o próprio Amílcar Cabral.
«Eu sou da geração que instalou o Estado. Lembro-me perfeitamente como era», diz Dabo. «Na altura, reunia-se todos os quadros que sobravam na Guiné, para constituir um único ministério digno desse nome, e não se conseguia! Eu era garoto na altura, tinha regressado de Portugal, cheguei, nunca tinha trabalhado na minha vida e meteram-me na administração pública. E já éramos todos diretores porque sabíamos ler e escrever».
«Ninguém pode fazer milagres», suspira o músico histórico. «E em 1980 há o maldito golpe do 14 de novembro, que baralhou tudo». Referia-se ao golpe levado a cabo pelo general João Bernardo ‘Nino’ Vieira, que derrubou o Presidente Luís Cabral, irmão de Amílcar, pondo fim ao projeto de unificação da Guiné-Bissau e Cabo Verde. Foi aí que a decadência de Bolama se acentuou, com a saída da indústria de tecido, das produções de sumo e compotas, dos centros de formação de enfermagem e a degradação dos transportes. Com o golpe de ‘Nino’, foi o início de décadas de caos, golpes e contragolpes de Estado, numa instabilidade política que está sempre abaixo da superfície. Enquanto o grosso da população fica nas margens, tratando do seu sustento. Sofrendo com a falta de estradas, saneamento, eletricidade, água potável, e desejando uma vida melhor.
Tesouro escondido no mato
Em Bolama, como no resto da Guiné-Bissau, o enorme vazio que separa o grosso da população do Estado vai sendo preenchido por organizações não-governamentais, financiadas por fundos internacionais.
Hoje, mesmo os serviços mais essenciais acabam por ser providenciados por estas entidades, como a ONG local Pró-Bolama, que, juntamente com a espanhola Ayuda, Intercambio y Desarrollo (AIDA), tem usado fundos europeus para tentar quebrar o isolamento entre as Bijagós. Sonham em criar uma rede de transportes, incluindo até ilhas onde o acesso só é possível apanhando boleia de pescadores. Mas também querem incentivar à criação de galinhas, apostar na transformação de pescado, para subir na cadeia de valor, aumentar a viabilidade comercial da produção de cajus e misérias – um fruto típico, ácido mas muito mais apetitoso que o nome indica – ou formar jovens em mecânica de motores, em particular de motos e barcos, essenciais para a mobilidade aqui, para os reter na região.
Essa é a grande dificuldade de Bolama. Nesta terra – ao contrário do que é a perceção generalizada de África na Europa – ninguém passa fome. Basta estender a mão para colher uma manga, lançar uma rede para apanhar peixe, atirar uma semente para a ver crescer, num clima quente e húmido que parece uma estufa a céu aberto. Mas, para os jovens mais ambiciosos que sonham subir na vida, ser advogados, engenheiros, profissionais de saúde, a única opção é zarpar para Bissau. Muitas vezes, até sair do país.
Avançando pela Estrada Grande, uma velha herança colonial, que atravessa a ilha de leste a oeste, essa realidade torna-se cada vez mais clara. À medida que nos afastamos de Bolama, entramos na África profunda, onde as paredes já não são de pedra e tijolo, mas de argila vermelha. Os telhados de zinco ainda reinam, mas vão sendo cada vez mais intercalados por palhotas – a leste da ilha vivem sobretudo os bijagós, habitantes nativos do arquipélago, conhecidos por não gostar de modernices, mantendo bem vivas as suas tradições animistas.
Navegando pelo mar de folhagem que ladeia a Estrada Grande, pontilhado por termiteiros gigantes, ou baga-baga, nota-se uma certa ordem entre caos. O arvoredo é denso, mas cuidado, cheio de cajueiros plantados ao longo de anos. Aqui a agricultura é sobretudo de subsistência, mas o caju – trazido pelos portugueses do Brasil, no séc. XVI, hoje a principal exportação do país – é a cultura que trás algum dinheiro à região.
O fruto de caju – delicioso, semelhante a morder um saco de sumo, fresco e ótimo para matar a sede – estraga-se com demasiada facilidade, mal se colhe da árvore, não se pode deixar a amadurecer a caminho da Europa como a manga. Contudo, a castanha de caju, aquilo que nos chega cá, depois de seca, ainda pode render alguns francos CFA aos aldeões.
Na fábrica do Alpoim
Aqui em Bolama, a castanha que não é consumida nas tabancas é vendida à fábrica de processamento construída por Alpoim Calvão. Décadas depois, este antigo comandante das forças especiais coloniais – que liderou a Operação Mar Verde, uma falhada invasão à Guiné-Conacri, para assassinar Amílcar Cabral e destruir lanchas do PAIGC, fundando depois do 25 de Abril o MDLP, uma rede terrorista de extrema-direita, responsável por atentados à bomba contra sedes do PCP e pelo assassinato do Padre Max – regressou a uma Guiné-Bissau diferente da que conheceu. Desesperou com a situação dos seus soldados guineenses, muitos dos quais estavam na miséria, desempregados, e decidiu abrir esta fábrica, parte da qual ainda é propriedade desses soldados, antes de ir morrer a Portugal, em 2014.
Agripino Carvalho ainda se lembra bem de Alpoim. «Aliás, estou a dormir no quarto onde ele morava», conta o diretor da fábrica, com um sorriso saudoso. «Era muito meu amigo, mas ele gostava de fazer algo muito maior do que isto, criar oportunidades. Era o sonho dele».
De momento, Carvalho não tem mãos a medir. Tem de gerir diferendos salariais e a dificuldade de ser época das colheitas de caju, a mais atarefada na fábrica, quando todos os trabalhadores querem voltar a casa, para ajudar nos campos da família. «O Alpoim ia buscar gente às zonas onde esteve na tropa, foi assim que conseguiu manter isto a funcionar», desabafa, enquanto tira algum do seu tempo para nos acompanhar pela fábrica.
Falando alto, numa fábrica barulhenta e com cheiro a torrado, o diretor mostra-se orgulhoso, apesar da antiguidade das máquinas, que ainda requerem que se separe o caju à mão, antes da parte mais crucial da operação, a secagem. «Se não for bem feita a castanha cola, parte-se muito, o objetivo é ter a castanha inteira, para ter mais valor. Por isso é preciso seguir o processo, medir a temperatura, de meia em meia hora».
Aqui, entra um pormenor genial. Nem sequer é preciso usar gasolina como combustível para alimentar caldeira, aproveitam-se as cascas de caju, explica o diretor, apontando para um monte delas. E, depois de seco e selecionado, o caju da fábrica vai sobretudo para a Europa, para a nossa mesa, algum para a América. É que na Guiné-Bissau, que produziu 150 milhões de toneladas de caju em 2018, segundo a FAO, estando no top dez mundial, à frente do Brasil, cada família cozinha a sua castanha em casa – o sabor não tem nada a ver com a que chega cá – ou compra a conhecidos, optando, de vez em quando, por fazer vinho de caju.
Um homem santo
Na ponta mais a oeste da ilha de Bolama, no meio do nada e a horas de tudo, deparámo-nos com um peregrino, sentado à sombra de uma árvore a olhar para o mar. É que este é um lugar é sagrado, não foi esquecido. Esconde uma pegada do profeta, dizem uns, ou a sepultura de um wali, ou «amigo de Deus», em árabe, contam outros.
Braima Djaló recebeu-nos com um sorriso beatífico, de camisa branca e kufi vermelha. Veio de bem longe, de Canchungo, ao pé de Cachéu, mas há quem venha de terras mais distantes, até do Mali. Está aqui há um mês e dois dias, a dormir numa pequena tenda. A comida e a água que trouxe já acabou, por isso caminhou até uma tabanca onde lhe ofereceram mais, emprestaram-lhe até uma bicicleta, conta, satisfeito. Sente-se melhor do que nunca, curado dos problemas de saúde que o atormentavam, após «virar a página e olhar para dentro»
«Senti que a minha conquista me levava aqui», explica Braima, em criolo, acariciando uma pequena página manuscrita, em árabe, com o nome de Alá, do profeta e de 133 irãs, os espíritos da natureza e sábios do passado – nesta terra de sincretismos, de muçulmanos, cristãos e antigas religiões africanas, tudo se mistura – que abençoam a Guiné-Bissau.
«Aqui tem um caminho secreto quando baixa a maré», continua Braima, olhando para Atlântico, para lá do qual os leigos pensam haver apenas ilhas e as Américas. «Quando está neste local, você está diretamente em comunhão consigo mesmo. E tem a visão de muitas coisas estranha, coisas invisíveis, que não se vê nesta vida, só na outra. Porque aqui também vivem os espíritos».
Braima nem sabe quando regressará à sua Cachungo, deixando para trás este ermo cheio de espíritos. «Eles ainda não me largaram», diz, entre risos. «Eu queria ir ao festejo do Ramadão, mas eles não me deixaram. Dizem-me que tenho de ficar aqui até à Lua Nova».
A bênção e maldição do mar
O céu noturno de Bolama é bem mais profundo que o mar da Guiné. Mesmo no meio da cidade, as estrelas são incontáveis e a noite escura, escura como em mais lado nenhum. Nem que seja porque falta tantas vezes a luz, com a população a depender de geradores e combustível trazido do continente. Sabemos que a Guiné-Bissau tem uma fama – imerecida, diga-se, pelo menos no que toca a delito comum – de país de risco. Mas é impossível não nos sentirmos seguros a caminhar nesta terra, entre as ruínas, mesmo sozinhos à noite, acompanhados por porcos, cabras e galinhas, tão essenciais para o sustento deste povo, que vive com um pé no campo e outro na cidade, mas que ninguém pensa em roubar. Afinal, estamos numa ilha onde todos deixam a porta aberta, onde todos se conhecem, e não há por onde bandidos escaparem.
Mesmo o paludismo – um flagelo para que nos avisam tão veemente nas consultas do viajante, que matou 280 guineenses em 2019, e é responsável por metade das consultas médicas no país, segundo dados oficiais – é uma preocupação menor aqui que no resto do país. É que, quando anoitece, saem das árvores os morcegos, os protetores de Bolama, em nuvens que escurecem os céus, soltando guinchos agudos de ecolocalização, devorando todos os mosquitos da malária que encontram. Não que a doença deixe de fazer vítimas. Todos conhecem histórias de gente que caiu, febril, falecendo antes de conseguir uma lancha para chegar a Bissau, para receber tratamento médico.
A insularidade pode ser a mais terrível maldição, mas também uma bênção incomparável. Aqui em Bolama, as crianças crescem mais no mar do que na terra, brincando em enseadas, todas juntas, sob o olhar dos caranguejos. Hoje, sem a pressão de uma igreja católica alinhada com o império, até podemos ver meninas tapadas de véu islâmico a pentear os cabelos de mulheres descobertas, ou escutar ao longe os cânticos dos imãs, naquilo que foi capital da colónia. Mesmo a conversa das etnias – são incontáveis na Guiné-Bissau, dos balantas aos fulas, passando pelos mandingas e os papéis, até aos bijagós, biafadas ou manjacos – ouve-se muito pouco. Aliás, se perguntar de que etnia é alguém, arrisca-se a que lhe respondam «é de Bolama». Talvez seja legado da proximidade da administração portuguesa, onde as linhas eram marcadas sobretudo entre colonos, assimilados e nativos.
Mesmo essa descriminação não era linear. O racismo é uma realidade complexa. «Do ponto político já se sabe, cidadania era uma coisa com aspas», salienta Dabo. «Logicamente, a administração era detida pelos europeus, que tinham um posicionamento social privilegiado em relação à maioria das pessoas. Mas, também uma boa parte dos portugueses que vinham para cá, do ponto de vista de classe, não estavam muito distanciados. Eram originários do campo, de zonas suburbanas dos grandes centros da metrópole, a maioria tinha a quarta ou a quinta classe, e conseguia-se uma certa relação».
«Vou-te dizer, o meu maior amigo de infância, o falecido Vítor, é filho de um português. Os pais tinham uma loja ali, em frente ao cinema. Éramos vizinhos, vivemos, convivemos, andámos na escola juntos. Os pais recebiam-me normalmente, os meus pais recebiam-no também», lembra o músico. «Havia uma diferenciação que tinha a ver mais com o próprio sistema, com a questão administrativa».
«O regime colonial, do ponto de vista humano, pouco ou nada tem. Quando tem um objetivo consegue-o através da exploração e da força, visando a satisfação das suas necessidades. O autóctone, o verdadeiro dono da terra, está situação de desequilíbrio de forças, como tal é normal que toda a produção colonial tenha sangue. A dominação cobra ao dominado a sua manutenção», refere. «Mas, se olhar para Portugal nos anos do fascismo, também era muito assim. Daí que me parece que chegamos ao 25 de abril juntos, porque tínhamos um inimigo comum».
Mas isso não aconteceu sem uma guerra sangrenta, mais sangrenta na Guiné que em qualquer outra colónia, em que massas de recrutas portugueses – a vasta maioria dos quais não queria estar ali – eram atirados contra os guerrilheiros do PAIGC. Antes de disso, boa parte desses portugueses passava pelo Quartel do Centro de Instrução Militar de Bolama, para receber instrução de combate no mato. Hoje, este quartel ainda continua lá, parte foi transformada numa escola para órfãos da guerra, mal terminou o conflito. Outra parte foi deixada ao abandono, com termiteiros gigantes a crescer nos pátios, onde pasta o gado.
«Deixar morrer Bolama seria um desastre de consequências inimagináveis», apela Dabo. «Porque depois disso, você não tem nenhuma cidade igual, com a história vivida», assegura. «Este é um dos reservatórios de história mais importantes da Guiné. Senão o mais importante».