Treze de Maio de dois mil e vinte e um. O dia estava cinzento, chuvoso e triste – a contrastar com a luz que nesse dia brilha intensamente nos corações dos católicos.
De repente surge a notícia que, apesar de esperada, estoirou como uma bomba: a Maria João partiu. Naquele momento de má memória não fui capaz de reagir como médico, mantendo o necessário distanciamento emocional, e comportei-me como um vulgar ser humano: procurei a toda a força alguém com quem falar.
Lembrei-me logo do Zé (José Raposo) e telefonei-lhe; obviamente, não me atendeu. Pensei depois no Miguel e no Ricardo (filhos), mas também não foi possível. Há muitos anos que acompanho esta família, e igualmente tenho recebido dela apoio e amizade nas horas boas e más da minha vida. Não conhecia o seu atual marido, João Soares, pelo que não era a ele que iria recorrer. Ocorreu-me, então, ligar à Rita Ribeiro – conceituada atriz, bem conhecida dos portugueses, com quem na véspera falara exatamente sobre o assunto; mas o resultado foi o mesmo.
Algum tempo mais tarde devolveu-me a chamada – mas eu, atrapalhado com a emoção do momento, não consegui transmitir-lhe a razão de ser do meu contacto. Compreendendo o embaraço, ela correspondeu com palavras de conforto; e a forma como se despediu tocou-me fundo: «Enquanto por cá andarmos, vamos celebrando a vida».
Nunca mais esqueci estas palavras, que talvez me tenham ajudado a despertar do ‘sono’ em que estava mergulhado.
Maria João Abreu acabara de entrar na ‘Vida’, uma vida diferente, e na Casa do Pai estará a olhar por nós (muito embora nos ‘doa a presença da sua ausência’).
Na sua vida terrena, Maria João foi uma autêntica lutadora. Conhecia-a bem e posso testemunhar a sua luta pela família. Recordo a filha dedicada, sempre preocupada com os pais; a mãe extremosa; a avó extraordinária. No campo profissional, foi uma atriz brilhante, lutando pelo teatro em todas as frentes, onde se incluía o teatro de revista, que se preocupava constantemente em manter.
O seu pai, de saudosa memória, chegou a vir buscar-me a casa à noite, para eu ir observar artistas em situação de doença aguda, seus companheiros no teatro. Numa dessas vezes, Maria João disse-me: «Além de amigo, o dr. é um aliado nosso na luta pela Revista».
Mulher simples, solidária, antivedeta, amiga do seu amigo, em especial dos seus colegas, que lhe teceram os mais justos elogios na altura do seu desaparecimento, a Maria João Abreu teve, nesta Terra, uma vida plena, gratificante, ‘uma vida em abundância’. O nosso Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, que marcou presença nas cerimónias fúnebres (a meu ver, bem), no seu depoimento sobre a vida da atriz veio ao encontro da minha reflexão ao dizer que «ela representa para muitos portugueses a familiaridade de quem está connosco porque se parece connosco».
A sua última luta foi contra a doença. Uma luta desigual, em que o mais fraco se submete à lei do mais forte, mostrando que, na verdade, não somos absolutamente nada.
No aspeto puramente médico, não me devo pronunciar, pois não acompanhei o caso pessoalmente. Mas pelo que me foi dado perceber pela comunicação social, terá tido o melhor tratamento; e, perante a gravidade da doença, foram dados todos os passos até onde foi possível ter ido. A família tem consciência disso, conforme pude constatar no velório, em conversa com o seu marido, João Soares – de quem guardo uma magnífica impressão.
Faço um apelo à serenidade e à compreensão de todos. Nos últimos tempos recebi um sem número de ‘pedidos’ de doentes e de conhecidos que, alarmados com as notícias sobre esta terrível situação, transformada num caso mediático, queriam à força fazer «uma tac à cabeça», sem haver qualquer justificação para isso.
Tenho tentado esclarecê-los, acalmá-los e informá-los que é ao médico assistente que devem recorrer e a quem compete decidir, pois cada caso é um caso. Volto a insistir no mesmo ponto: é preciso ter cuidado com as notícias e o excesso de informação, não vá provocar no grande público o efeito precisamente contrário, ou seja, uma desinformação, por nem todos estarem preparados para perceber o que está em causa.
Vivamos um dia de cada vez. Continuemos a ir ao teatro. É a melhor homenagem que podemos prestar à Maria João.
E, enquanto peregrinos neste mundo, fazendo minhas as palavras da Rita Ribeiro: «Vamos celebrando a vida!».
(À memória de Maria João Abreu)