por João Maurício Brás
Ao transformarmos o mundo num supermercado, o tal mundo do mercado livre e global edénico, em que todos somos livres, felizes e bons, ao vivermos essa ficção, construímos um manicómio. A pandemia da covid expôs o pandemónio e a pantomínia política e axiológica em que vivemos nestas frágeis democracias mediáticas. A covid é o maior desafio da humanidade desde a II Guerra Mundial. Dispomos de um poder científico inédito, mas não temos sistemas políticos e éticos ao mesmo nível. Estamos confusos, histéricos e frenéticos. O espírito do tempo e o velho fundo paranóico-conspirativo do humano irrompeu também neste caos.
Todas as épocas mais conturbadas são férteis em mitos da conspiração. Os conspiracionistas deste tempo repetem padrões mas têm a sua singularidade. Segmentos do esquerdismo Feng Shui e de uma direita alternativa desvelam conspirações e cabalas em todo o lado. O relativismo moral e cognitivo é o seu traço identitário. O negacionista que viu a verdade, que percebeu a grande cabala mundial de Soros, Bill Gates e do marxismo cultural, que suspeita da vacina e que está a ser vítima de uma conspiração mundial, não é diferente do defensor da teoria do género ou do «racismo é só branco» ou do machismo tóxico e do «tudo é fascismo». Eles percebem algo que os outros não conseguem ver e vão reformar e salvar o mundo, basta segui-los. O «meu corpo minhas regras», não é diferente da «autopropriedade do meu corpo», na exigência patética de uma pseudoliberdade infantil e irresponsável. As franjas extremistas de esquerda e direita são idênticas, e já não têm crenças, mas alucinações. Confundem liberdade com irresponsabilidade, conhecimento com opinião e ciência com charlatanismo, qualquer um está habilitado a falar de qualquer coisa depois de ler duas folhas, confunde-se autoridade e autoritarismo, a ideia que se tem da ciência é a de uma receita de micro-ondas e triunfa a ignorância e a irracionalidade. O Ocidente evoluiu tecnologicamente mas falhou em todos os outros planos e muita gente está totalmente perdida e desorientada.
É curiosa esta simbiose das franjas mais inadaptadas e delirantes da esquerda, da direita, dos liberais e dos libertários, como problemas de aceitação e descrentes e ressentidos, debandaram do real e tentam afirmar-se. Todos, mesmo que inconscientemente comungam do espírito new age dos anos 60, ainda gritam que é proibido proibir no seu mundo mental alternativo e irreal. Até os anti esquerda-pós-moderna são agora Foucaultianos, e para eles tudo é opressão do poder e sociedade de controlo e vigilância. O Trumpiano bem pode surgir de braço dado com um pós-marxista nestes grupúsculos demenciais e histéricos. A covid entra para o top da projeção paranoide-conspirativa que inclui bizarrias como a dos aviões que no seu rasto estariam a lançar sobre as populações um composto para as dominar e assim estabelecer um controlo mental e outras ‘verdades’ como o fluor na água, o poder oculto de Bildeberg e dos Iluminatti, as catástrofes naturais como operações de bandeira falsa, a ilusão da chegada de americanos à lua, Elvis, Hitler e Cobain que estão vivos numa praia no México, a utilização de publicidade subliminar para nos controlarem, que só usamos 10% do cérebro, os atentados falsos do 11 de setembro, os povos, como os judeus, que querem dominar o mundo, a terra é oca e/ou plana, e por aí fora…