Matemático das seis cordas. Acordes do eu, da vida e do mundo dedilhados em seis cordas

Em Afonso de Melo podemos constatar que a sua mundividência se reflete esplendidamente no inesgotável, secreto e fascinante mapa mundi que é a sua poesia como também o é a sua prosa, em que algumas das suas crónicas são magníficos poemas em prosa.

por Paulo Sucena
Professor

Afonso de Melo, deixou de publicar poesia depois de Não Morrerei em Buenos Aires (D. Quixote, 2006), em que a voz que canta nesse livro é uma voz cindida, uma voz à procura, muitas vezes em tom angustiado, da sua própria harmonia, talvez por saber, como escreve Eduardo Prado Coelho, na esteira de Bakhtine, que «cada um de nós nasce e morre. Mas a minha morte e o meu nascimento são acontecimentos que eu não consigo viver de dentro (…) contudo, entre a minha morte e o meu nascimento, desenrola-se a presença ilimitada da minha vida, e aí eu digo eu», [tal como acontece em Matemático das Seis Cordas].

É esse ‘eu’ que uma vez mais adquire a sua voz, cada vez mais própria, neste belíssimo Matemático das Seis Cordas, com um registo literário mais conseguido poeticamente do que no livro anterior. O último volume de Afonso de Melo compagina-o, tal como o anterior de poesia e os quatro livros de crónicas entretanto publicados, com Blaise Cendrars, esse aventureiro fascinado pelas viagens a partir das quais nos deixou uma visão caleidoscópica do mundo. Em Afonso de Melo podemos constatar que a sua mundividência se reflete esplendidamente no inesgotável, secreto e fascinante mapa mundi que é a sua poesia como também o é a sua prosa, em que algumas das suas crónicas são magníficos poemas em prosa.

Matemático das Seis Cordas é um título imbricado. Nele se assume uma certa racionalidade plasmada pela emotividade. É um livro que traduz uma visão múltipla da vida e do mundo, nascida muitas vezes das seis cordas da sua lira de poeta, outras da racionalidade do matemático. É constituído por quatro partes a que o autor chama Livros, cada um com o seu título.

O Livro I inicia-se com o poema que dá o título à obra. A voz do poeta é a voz de alguém que possui a capacidade de transfigurar o mundo, um processo tão incerto e tão gerador de dúvidas e angústias que, por vezes, obriga o poeta a socorrer-se da ironia, como acontece na quarta estrofe: «Alegre arquiteto do sol e dó/Ínclito talento de mãos cheias/Faz sambas de uma nota só/E baladas mornas a notas meias».

Os outros três poemas deste Livro abordam aspetos muito específicos, como o Soneto do Anglia Fascinante em que se descreve uma viagem no velhíssimo carro do poeta, no fim da qual conclui que «a vida não tem marcha atrás nem se adivinha». No terceiro poema evoca-se a morte de uma tia do poeta, morte que ele recusa com um desesperado NÃO, mas «o NÃO não responde/é apenas um não de não ser nada».

No último poema do Livro I, deparamo-nos com uma corda lírica de onde soa «como um fio de rio que deixasse/o traço matinal de uma ternura». Porém, da última quadra chega-nos a música de um acorde triste: «Aquilo que afinal nunca quiseste/Não sei bem se a tristeza ou a loucura/ou a amargura íntima do cipreste».

O Matemático exercita as seis cordas do Livro II, constituído por seis poemas, alguns extremamente longos, em que no primeiro nos oferece uma imagem multifacetada da atual cidade de Moscovo que lhe traz à memória, entre outros artistas, a extraordinária bailarina Maya Plisetskaya, a figura de Serguei Iessenine, esse excelente poeta que se suicidou muito novo depois de uma escaldante aventura amorosa com a bailarina Isadora Duncan e também a do grande poeta Ossip Mandelstam, tragicamente perseguido pelo regime político de então. A alma russa não deixa de pulsar nos versos de Afonso de Melo com a evocação da arte de Mussorgski que, inspirado no poema de Pushkin, compôs Boris Gudonov, uma ópera épica, de tom sombrio em que a personagem principal é o povo russo, nela se refletindo a alma torturada da velha Rússia a que, cuido não me enganar, poderia irmanar com a de Afonso de Melo.

Os outros cinco poemas, revestidos da forma narrativa, mostram-nos a alma viageira do poeta, desde o poema Há um Lugar onde o Nilo se Torna Branc até Translúcida a Sombra, O estranho caso do invisível homicídio do camada Mao em plena Praça Tianamen (a extensão do título acompanha a extensão dos poemas, Quando o sol se punha por detrás do Irrawady (ao mais longo rio do Egito junta-se agora o mais longo rio da Birmânia) que é um poema de uma só estrofe onde ressalta uma inesperada ternura «e um sorriso para trocar com os meninos/que trazem o sol dentro do sorriso».

O último poema, Meridiano de Greenwich, também de uma só estrofe, dá-nos o poeta a trabalhar com aspetos fragmentários de uma realidade múltipla que é afinal a tarefa a que está destinado o viajante compulsivo, apetrechado de uma vastíssima cultura, como é Afonso de Melo.

Diria que estamos perante um conjunto de poemas em prosa que poderia classificar de diamantina em resultado da bela e consistente conexão entre narratividade e imagética.

O Livro III – Atravessando Poemas – mostra-nos que a leitura da poesia é uma leitura outra. Não se lê um poema como se lê um comunicado, mas no entanto o poema comunica. Este Livro evidencia o fascínio e a incerteza profundamente enriquecedora de um poema, como o mostra a leitura da 5.ª travessia.

Deste livro gostaria ainda de me referir a O Poema Único de ir Sempre. É um poema longuíssimo, cujo título contém a matriz do poeta e consequentemente de muita da sua poesia. É um poema atravessado por muitos sentidos de que pretendo ressaltar a evocação de uma criança cuja presença é tão poderosa no interior do poeta que em certo momento são duas infâncias que se tangem – a da criança e a do poeta. Este tema é retomado no poema O Mar a Mim. Porém, a vida os separa e ao poeta só restou «a solidão e a saudade e o verbo irregular de mim/que não se conjuga com coisa nenhuma».

O último livro (Livro IV) de Matemático das Seis Cordas é percorrido por uma ácida disforia que começa logo no primeiro poema – Coimbra sem Coimbra – de que o poeta diz «Vejo-te Coimbra sem Anto, bacharel e cego/Ouço os quartos da cabra em desafino«.

O mesmo tom se encontra no segundo poema – Um Soneto que não é para Doutores –, de que apresento a estrofe final: «Uma ode às últimas urdiduras/De canalhas que provocam tanto asco/Que deviam ter lugar nas escrituras».

Sublinho ainda que o poema intitulado Ode ao Sexo Fundamental, que é atravessado por uma violência inaudita, termina com uma suave ternura: «E enquanto vivo estas dúvidas terrenas/a maior certeza que cresce em mim/é a de que, no fundo, o sexo é apenas/um carinho que foi até ao fim».

O último Livro termina com um longo poema – Barco Ébrio, cujo título foi emprestado por Rimbauld, autor de Le Bateau Ivre.

Se me é permitido, gostaria de anotar dois aspetos relativos aos dois poemas e aos dois poetas. Para isso, confronto duas estrofes, uma de O Barco Ébrio e outra de Le Bateau Ivre.

Escreve Afonso de Melo: «Cães ganindo numa aflição de cio/Vede o céu, a lua cheia/Vede o mar, a maré cheia/Vede o céu da irreversível alvorada/E orai por nós a um Deus vazio».

E agora a estrofe de Rimbaud que traduzo: «Se uma água da Europa desejo, é a do charco/Negro e frio, onde no crepúsculo perfumado/uma criança agachada cheia de tristezas solta/um barco frágil como uma borboleta de Maio».

Termino, afirmando que para Afonso de Melo a poesia, as notáveis reportagens com que nos tem brindado, as múltiplas viagens por todo o mundo são porventura o cerne do seu ser que se tem mostrado imbuído do desejo de afugentar o tédio, e de impelir a tristeza para um lugar ao sul porque é aí o seu lugar, visando com isto ficar desperto e livre para multiplicar o seu eu e com essa transmutação ser capaz de mudar a vida, como ambicionava Rimbaud.