SEVILHA – Uma velha pilhéria espanhola conta que dois companheiros de trafulhices e tranquibérnias, depois de terem feito as suas contas com a Dona da Pensão da Vida, como dizia o Torga, se viram no Inferno a assar como porcos no espeto. Há um deles que, não suportando o calor, exclama: «Carajo! Que calor de puta madre, ese!!!». E o outro, para lhe dar alento, responde: «Tranquilos. Imaginate en Sevilla».
Foi portanto para Sevilha, a magnífica capital da Andaluzia, cidade que, diz a História, terá sido fundada pelos tartessos, um povo que viera da Grécia e se afeiçoara à foz do Guadalquivir, cuja existência já fora registada Eforus, o historiador, que Portugal tratou de ser chutado depois de se qualificar como terceiro do Grupo F desta primeira fase do Europeu de 2020 deslocado para 2021 por via da maldição invisível que alterou os hábitos dos homens de um momento para o outro.
Depois da vitória inicial, frente à Hungria, por 3-0, na Puskás Arena de Budapeste, com mais de 60 mil pessoas nas bancadas, parecia que tínhamos entrado no caminho de uma nova vida, não apenas a vida-vidinha de vermos as pessoas deslocarem-se em grupos na sua inteira liberdade, mas também a nova vida de uma seleção nacional que tinha andado, estranhamente, a dar relativa má conta de si nos últimos tempos, falhando o apuramento para as meias-finais da Liga das Nações, perdendo em casa com a França (0-1) quando um empate bastava, e sendo bastante maltratada pela Espanha num jogo de preparação em Madrid (0-0) no qual valeu a desastrada finalização de ‘nuestros hermanos’, problema que resolveram no último jogo, enfiando cinco golos na baliza da Eslováquia, depois de terem ficado a zero com a Suécia e marcando apenas um golo no empate frente à Polónia de Paulo Sousa.
Mas, enfim, com os males dos outros podemos nós bem. Sinais de preocupação ficaram à vista apesar dos 3-0 da estreia. Os golos só surgiram depois dos 84 minutos, a exibição foi bastante aborrecida, as ligações de alguns setores, como foi o caso da dupla Danilo-William Carvalho, ou da equação Bernardo Silva-Bruno Fernandes-Diogo Jota, deram ideia de terem sido coladas com cuspo, salvando-se a alacridade do jovem avançado do Liverpool que serve na perfeição como muleta às cavalgadas de Cristiano Ronaldo.
Se contra a Hungria os nossos defeitos foram esbatidos pelo volume da vitória, em Munique, quatro dias mais tarde, ficámos com a absoluta sensação que a campeã da Europa ia nua e que a sua nudez tinha algo de horrendo. Tantos erros, a despeito de ter chegado à vantagem aos 15 minutos, após um contra-ataque desenhado com o traço inconfundível de mestres da arquitetura, tamanho défice físico, arrepiantes desentendimentos defensivos que nos valeram sofrer quatro golos no perímetro da pequena área (dois deles considerados auto-golos pela UEFA), deixavam-nos, outra vez, a depender da bondade dessa mágica senhora das paixões que é a bola em toda a sua feminina leviandade.
Perceberíamos, mais tarde, que o resultado do jogo inicial fora esplêndido (a Hungria empatou em casa com a França e foi empatar a Munique), mas de nada serviria em caso de mais uma derrota e de uma vitória dos húngaros. Por isso voltámos a sofrer a bom sofrer na decisão, face à França, com aquele empate excitante a dois golos que nunca deixou os espetadores da Puskás Arena com os rabos muito tempo em repouso nas cadeiras.
O carrossel!
Se há algo que estranhamos nesta seleção nacional que muitos teimam em considerar a melhor de todos os tempos, é a incapacidade para manter um nível exibicional constante, e principalmente de alto nível com é de exigir aos que trazem no peito o emblema de campeões da Europa. O carrossel dos jogos de Portugal tanto nos levam ao Túnel do Amor com ao Comboio Fantasma da velha Feira Popular. Por momentos, acreditamos seriamente que estamos entre os melhores do mundo, capazes de repetir a conquista inimitável de Saint-Denis, no dia 10 de julho de 2016, e no momento seguinte entramos numa espiral negativa que nos põe à mercê de qualquer conjunto mais débil ou sujeitos a achincalhos como o de Munique.
Fernando Santos remendou o meio campo frente à França com a entrada de Moutinho e de Renato Sanches para os lugares de Bruno Fernandes e de William Carvalho e o conjunto ficou mais arrumado. Bruno Fernandes está numa fase de atrapalhação como nunca lhe vimos (até a entrada para o lugar de Bernardo Silva, na última terça-feira, foi logo sublinhada com dois lances sem sentido), Bernardo Silva tem as fragilidades defensivas que todos topam a olho nu (ocupa o espaço, pressiona, mas não entra em choque), William Carvalho tem uma tendência inata para o passe lateralizado e uma necessidade de pensar no que fazer que tornam muito lentas as suas ações ofensivas.
Que cada um faça as suas críticas, desde que, obviamente, dentro das fronteiras da honestidade intelectual, algo que às vezes falha por embirrações pessoais que deviam ser deixadas para outros locais mais apropriados. Quem afirma que esta é, no seu conjunto, a melhor seleção nacional de todos os tempos, di-lo-á com convicção, mas para nós há demasiados pontos baixos por entre os pontos altos para que uma declaração como essa se faça sem dar múltiplas voltas às celulazinhas cinzentas que encantavam o detetive belga de cabeça de ovo de Agatha Christie, Hercule Poirot. Os desequilíbrios estão, aliás, bem à vista quando olhamos para a forma como atingimos os oitavos-de-final: sete golos marcados e seis sofridos. Números que espelham uma inquietação pouco própria para quem quer ser, de novo, campeão da Europa – talvez não valha de muito esta nota, mas em todo o Europeu de 2016, sofremos apenas cinco golos, e três no mesmo jogo, o último da fase de grupos frente à Hungria.
Agora, já hoje, é tempo de defrontar a seleção da Bélgica, inequivocamente uma das mais encantadoras equipas do mundo, capaz de fazer com que a enorme qualidade das suas estrelas brilhe numa constelação tão visível no céu que lhes pertence como a Ursa Maior numa noite de Verão à beira-mar. De certa forma será um adversário mais ao nosso estilo: não somente defensivo (Hungria), não apostador em brutas cavalgadas valquirianas (Alemanha), não amarrado a um estilo tático no qual a força física do meio-campo se sobrepõe (França). Será, por assim dizer, uma luta entre dois espadachins, daqueles que brigavam pelos amores das sevilhanas que lhes jogavam flores ou cachos de caracóis do alto das varandas que os nossos amigos árabes souberam construir para combater os exageros do calor andaluz. Se há um momento certo para que Portugal mostre verdadeiramente o que vale, é este. Sair do Europeu amanhã, pela porta do cavalo, não fica bem a um campeão da Europa.