por Afonso de Melo, em Sevilha
Em Sevilha, no centro da movida e dos comedores, há uma rua chamada Duende. Não tem mais nada escrito nas lajes que estão no início e no final desse ruazinha estreita e sem charme. Duende. Duende apenas. O Duende de Lorca, claro. Teoria e Prática. “Em toda Andaluzia, rocha de Jaén e búzio de Cádiz, as pessoas falam constantemente do Duende e o descobrem naquilo que sai com instinto eficaz. O maravilhoso cantador El Lebrijano, criador da Debla, dizia: ‘Nos dias em que canto com Duende não há quem possa comigo!’”
Quem passa, como eu, os olhos pelo circulo largo do Estádio de La Cartuja, tantas cadeiras desperdiçadas, tristemente vazias por causa da maldição da tal gripe desgraçada que a gente nem sabe se é gripe ou não, não deixa de pensar que este será um jogo ao qual o Duende nunca faltaria, ainda que fosse obrigado a deixar a caña a perder o gás na mesa da Bodega Casa Morales, aquela que fica, precisamente, numa esquina da rua que chama Duende mas não se chama rua. Talvez, há minutos, tenha passado pela cabeça de Cristiano Ronaldo o mesmíssimo pensar de El Lebrijano: “Nos dias em que jogo com Duende não há quem possa comigo!” Estão, lá em baixo, dois nº7 que podem dizer a mesma coisa. O outro é De Bruyne. Muito provavelmente por causa dele, Fernando Santos optou por pôr Palhinha a titular, fixando-o mais no centro em relação a Renato Sanches e João Moutinho, mais adiantados.
São equipas sem segredos. Uma e outra tentarão trocar a bola, utilizando para isso todos os seus jogadores, guarda-redes incluídos. Girar para dispersar os adversários. Ao mínimo espaço que se abra, há nas duas frentes de ataque quem saiba aproveitá-lo de forma absolutamente assassina.
Há, sem dúvida, medo de um lado e do outro. Ninguém corre o mínimo risco. Tudo é calculado de forma elegante mas excessivamente inócua. Os minutos passam sem que alguém se interesse pelas balizas ou até mesmo pela grande-área contrária. Eu que apostara que a mosca do aborrecimento não pousaria neste jogo, tenho de engolir a palavra escrita. O Duende ainda não se levantou lá da sua mesa do Barrio de Triana, espetando a palito anchovas e boquerones. A sua ausência leva apenas a que o livre marcado por Ronaldo ponha a arder as mãos de Thibault. No meio-campo é Renato Sanches que manda. Mas os blocos sobem e descem em bloco, se me faço entender. Belgas e portugueses estão tão juntos que os espaços que sobram na relva de La Cartuja vão ficando sem proveito. Sevilha, a cidade das varandas, recebe um jogo sem portas e sem janelas. Pior. Ninguém parece muito preocupado em fazer algo para sair deste futebol claustrofóbico. E, que diacho! Há algo pior para um cronista do que não ter nada para escrever. Tenho cócegas nos dedos para que consiga tirar do qwert a palavra golo.
Escrevo-a, finalmente, mas contrariado: o pontapé belíssimo de Torgen Hazard deixa Rui Patrício sem resposta. A Bélgica ganha vantagem em cima do intervalo (42 minutos). Uma vantagem de sublime importância num jogo com estas características.
Insolúvel.
Como é habitual, Fernando Santos tinha agora uma bota para descalçar, se não mesmo um par delas. Bernardo Silva e Diogo Jota eram tão inexistentes como o Duende que, afinal, resolveu faltar à chamada do ainda campeão da Europa. Encurralados naqueles quadrados entre as linhas da grande-área e as de fundo, nenhum surgia perto de Ronaldo para lhe servir de apoio. O capitão lutava sozinho.
Tal como acabara a primeira parte, a Bélgica apareceu mais capaz na segunda. Sobretudo capaz de jogar de forma organizada e dando largas ao talento. O_Duende, se chegou a aparecer, foi nos pés dos irmãos Hazard, no direito de Torgen, no minuto do golo, e na forma como Eden ia controlando a bola por entre os portugueses que lhe saltavam ao caminho. Moutinho e Bernardo Silva saem para a entrada de Bruno Fernandes e João Félix. Há meia-hora para jogar. Uma meia-hora que precisa de gente capaz de se dedicar à batalha pela bola e pelos espaços da mesma forma que lutaria pela própria vida. Mas não há um pássaro que se liberte neste Portugal sem janelas. Não há um sopro mágico vindo dali, das águas Guadaldivir, para fazer com que Portugal consiga respirar uma ligeira brisa de felicidade.
Alguns dos portugueses confinados pelos dois cantos do estádio acreditam que é possível desfazer a muralha belga. Mas nada no futebol da Selecção Nacional se alterou em termos de criatividade ofensiva. As questiúnculas entre jogadores multiplicam-se e o tempo de que tanto precisamos vai-se escoando como areia numa ampulheta. Entre canelas e cabeças são utilizadas para acertar em canelas e cabeças em vez de tratarem de conduzir a bola ao seu destino. Dá a sensação, cá do alto, da bancada de imprensa, que os jogadores também não crêem na sua capacidade de fazer um golo, um golo que seja e que empurre o jogo para o prolongamento. Falta serenidade onde é preciso discernimento. A aventura de França está destinada a não se repetir. Pede-se ainda um pouco mais de força, mas desta vez a sorte vira-se contra nós com a bola a bater no poste belga com estrondo. Os minutos finais são emocionantes, o jogo fica partido, de cá para lá, talvez exista ainda a esperança feiticeira do momento súbito, inesperado. Não aconteceu. O campeão disse adeus.